Manifesto pela criação de filhos plenos

Não podemos dar às pessoas aquilo que não temos

Para ler ouvindo: Dona Cila – Maria Gadú

 

Mães nutella? Pais helicóptero? Criação com apego? Crianças francesas realmente não fazem manha? Se você tem filhos ou convive com alguém que tenha provavelmente já ouviu alguma dessas expressões por aí. Elas surgem jogadas ao vento, quase que despretensiosamente, mas costumam causar tsunamis na psique dos alvos. O fato que ninguém te conta em meio ao êxtase do teste de gravidez positivo é que os rótulos também farão parte desta jornada. A gente que lute!

Na mesma medida do amor incondicional estão as cobranças. Elas podem vir daí de dentro mesmo, você sabe, nos momentos de terror, frustração e culpa. Ah, sim, e eles existem aos montes, tá? No mais, de cada olhar que se volta à sua forma de educar. A bem da verdade, nossa cultura adora uma competição e, especialmente, na maternidade a crítica é algo corriqueiro. A despeito das redes de apoio que poderiam muito bem se multiplicar nos trazendo marmitas para congelar no puerpério, oferecendo um passeio ao filho mais velho quando e se o baby blues bater o auge ou simplesmente iniciando uma conversa adulta que não envolva leite materno enquanto seus peitos ainda jorram ou pingam descompassados, eu digo às minhas companheiras de trincheira: vai passar, outra nova e desafiadora fase virá e assim sucessivamente. Tente relaxar!

É uma pena, mas as fórmulas prontas do manual colorido  e ilustrado que ensina a criar filhos costumam não ser tão eficazes no meio do olho do furacão. Já falei sobre instinto por aqui e confio mais nele do que em qualquer outra sedutora, e até mesmo arriscada, teoria milagrosa. Se ler bons livros e seguir conselhos à risca nos garantisse filhos que dormem a noite toda e comem qualquer alimento que colocamos no prato ou que serão felizes, terão boas amizades e sucesso profissional, o mundo tal qual como o conhecemos estaria extinto há décadas. A má notícia? Seguir a intuição num emaranhado de luta, esperança e experiência nos torna vulneráveis e socialmente errantes. Por outro lado, quando nos apegamos obsessivamente às nossas escolhas sobre educação, ao nos vermos diante de outras formas quase encaramos isso como uma afronta. Um verdadeiro desperdício de tempo e energia.

No universo materno, a arbitrariedade, a intolerância e o julgamento não poupam ninguém. Nem mesmo quem pensa não estar fazendo nada disso. Isso porque diariamente caminhamos num campo minado repleto de autoanálise e comparações. Temos dificuldade em lidar com as incertezas nessa área da vida? Óbvio! Porém, no mais íntimo do nosso ser sabemos e gritamos calados, em uníssono, a grande verdade assustadora: não existe e jamais existirá perfeição.

A escritora Brené Brown, autora do best-seller “A coragem de ser imperfeito”, inflama o debate sobre a criação de filhos plenos dizendo que “em se tratando de ensinar as crianças como viver com ousadia na sociedade da escassez, a questão não é tanto ‘você está educando seus filhos da maneira certa?’, mas sim, ‘VOCÊ É O ADULTO QUE DESEJA QUE SEUS FILHOS SE TORNEM UM DIA?’“. Como pais e mães, jamais teremos controle sobre o temperamento e a personalidade de nossos herdeiros, no entanto, estamos diante da possibilidade de dar-lhes estrutura emocional para enfrentar os milhares de desafios que irão surgir. Assim como Brown, acredito que não podemos proteger nossos agora pequenos seres de todos os problemas, o que nos cabe é caminhar ao lado deles criando fortes vínculos de significado, compaixão e acolhimento. Em resumo, se quisermos que nossos filhos amem e se aceitem como são, nossa tarefa é amar e nos aceitar como nós somos.

A seguir, trago o “Manifesto pela criação de filhos plenos”, elaborado pela pesquisadora norte-americana e mãe de dois filhos. Sensível e certeira, Brené (para os íntimos) toca na ferida que dia após dia curamos e voltamos a tirar a casquinha.

“Acima de tudo, quero que você saiba que é amado e que tem a capacidade de amar.

Você descobrirá isso por meio de minhas palavras e atitudes: as lições sobre o amor estão na maneira como eu o trato e como eu trato a mim mesmo.

Quero que você se relacione com o mundo a partir de um sentimento de dignidade e de autovalorização.

Você descobrirá que é digno de amor, aceitação e alegria todas as vezes que me vir praticando amor-próprio e acolhendo minhas próprias imperfeições.

Nós praticaremos a coragem em nossa família ao nos mostrarmos, ao deixarmos que nos vejam e ao valorizarmos a vulnerabilidade. Compartilharemos nossas histórias de fracasso e de vitória. Em nosso lar sempre haverá espaço para ambas.

Nós lhe ensinaremos a compaixão exercendo-a primeiro com nós mesmos e, então, uns com os outros. Colocaremos e respeitaremos limites; valorizaremos o esforço, a esperança e a perseverança. Descanso e brincadeira serão valores de família, assim como práticas de família.

Você aprenderá sobre responsabilidade e respeito ao me ver cometer erros e consertá-los, e ao ver como peço o que preciso e falo sobre como me sinto.

Quero que você conheça a alegria, para que juntos pratiquemos a gratidão.

Quero que você sinta alegria, para que juntos aprendamos a ser vulneráveis.

Quando a incerteza e a escassez baterem à nossa porta, você será capaz de recorrer à ética que permeia nossa vida diária.

Juntos, choraremos e enfrentaremos o medo e a tristeza. Vou desejar livrá-lo da sua dor, mas em vez disso ficarei ao seu lado e lhe ensinarei como senti-la.

Nós vamos rir, cantar, dançar e criar juntos. Sempre teremos permissão para sermos nós mesmos um com o outro. Não importa o que aconteça, você sempre será aceito em nossa casa.

Quando iniciar a sua jornada para ser uma pessoa plena, o maior presente que poderei dar a você é amar intensamente e viver com ousadia. Não irei ensiná-lo, amá-lo nem lhe mostrar as coisas de forma perfeita, mas eu me deixarei ser visto por você e sempre considerarei sagrado o dom de poder vê-lo verdadeira e profundamente.”

 

(BROWN, Brené, 2016, p. 183)

Com a lágrima que corre, até a próxima!

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