Vontade de ser bicho
Algumas suposições sobre a existência
Se eu fosse uma gata, poderia dizer que é uma bola de pelo na garganta, mas o fato é que sou gente – MULHER – dessas que se atira dos mais altos abismos, acreditando que pode voar, sem ao menos testar a pista de pouso. Sabemos que é raro, mas às vezes as asas não abrem.
Asas que não abrem? Talvez cortadas? Muito provavelmente são elas que me impedem de controlar o voo e quando me jogo do alto, eu me arrebento, mas como gata, caio em pé, como gata, eu tenho sete vidas e ficaria viva com minha bola de pelo na garganta, sendo gata eu regurgitaria e tudo ficaria bem até a próxima bola de pelo.
Mas de fato, sou gente, MULHER e como gente grande que sou, que não pode dizer tudo que sente, chorar alto, espernear, fazer birra que nem criança… carrego na garganta, quiçá no peito, muito choro entalado. Como gente, minha bola de pelo não, não sai tão fácil. Fato!
Tem um choro entalado na minha garganta, que queria eu ser gata e vomitar tal qual bola de pelo. Mas não dá, eu sei.
Queria eu não acreditar que eu sei quase tudo, queria saber resolver tudo, essas arrogâncias de ser gente que acreditam em controle. Essas fraquezas que nos fazem ter esperança de coisas que não temos autoridade.
Destas fraquezas que como gente gostamos tanto, mas que as vezes vira bola de pelo na garganta. As vezes vira bola de neve na vida e diferente de bola de futebol, não dá apenas pra jogar pra lá. E bola é assim, a gente deixa rolar…
E as vezes você tá lá fluindo na vida que nem peixe no Rio. Mas daí bate numa pedra e quando percebe a vida vira nó, que nem cadarço de chuteira, desses que não ata e nem desata e vai impedindo as palavras de saírem e seguir o jogo, e obstruindo todo o desejo de ser gigante por aí, eu fico pequena, que nem peixinho recém-nascido ou gatinho recém parido.
Gente pequena. Gente pequena é criança, eu amo criança, mas detesto ser tratada como uma. Porque neste caso, não sendo bicho, eu sou gente grande. MULHER que gosta e exige respeito e espaço. Senão eu rápido que mando pro espaço opiniões que não pedi. Ninguém tem que nada… “Ah, mas eu acho que…” quando você tiver certeza, volta, e a gente conversa.
GENTE grande é chata pacas. Já bicho eu gosto muito, de gato não, gato eu gosto da beleza, gato me intriga e aí prefiro cachorro que diz a que veio, barulhento, manhoso, cachorro é que nem gente pequena, já falei que amo gente pequena, gente pequena é caderno em branco. Eu amo escrever, mas amo mais ler os pequenos.
Não gosto de ser pequena, gosto do exagero, do beijo na boca que erubesce as bochechas e molha a buceta, da marca dos dedos de excitação que imprimem na pele, dá pele que sangra, que corta e cicatriza, gosto de ser bicho, prefiro o instinto ao excesso de racional, que se foda se é imoral. Diferente de gato, não quero ficar lambendo minhas feridas.
Não gosto de emoções reservadas, de desejos camuflados. Tem dia que eu odeio tudo e todo mundo e ainda assim não quero ser reserva, desejo comedido, que tédio deve ser gente que se poda, poda só se for para florescer, gente que não se permite, que se omite. Não gosto. Que se reserva ao direito de ser pequeno, que mata a própria vontade de ser bicho. Que se cala e se anula. Compreendo, mas não gosto.
Porém, não gosto de ferida aberta, do machucado que nem sara e nem cicatriza, que fica ali, ardendo e lembrando que dói. Também não gosto de gente que enfia dedo em ferida aberta, sempre sinto vontade de mandar enfiar o dedo vocês sabem onde, só não mando porque vai que gosta, não desejo prazer ao tediosos e chatos e pacatos. As vezes desejo cortar o dedo. Essa vontade de ser bicho, ela grita. Grita vida, essa coisa imensa que é estar vivo.
Apesar de bicho, eu sou ciente do que dói e consciente de como faz para parar de sangrar. Deveria ser catalogado todas as dores de gente, que assim como eu, sentem. Nada é tão vivo quanto a dor.
Tem dor de tanto jeito, tem até dor boa, dor de barriga de riso, dor do parto que vê a carinha do filho chegando ao mundo, que nem bicho. Dor de exercício que machuca, mas faz bem. Dessas eu gosto, gosto tanto que até esqueço que desaprendi a chorar. Tenho desejado chorar, de molhar a camiseta e escorrer o nariz. To virando gente comedida que se preserva, dessa gente que não gosto e não quero ser. A gente se torna aquilo que critica, será? Tomara que não!
O problema é que choro que não chove, seca a gente por dentro. Daí vira bola de pelo, digo, choro contido, aí de mim que não sou gata, mas queria.
Ah como eu queria ser gata e andar nos telhados a noite, com outros gatos vagabundos, curtindo o role e miando pra lua. Mas o fato é que enquanto MULHER, não dá nem para ser gata vagabunda nos telhados, porque tudo no feminino tem o olhar pejorativo do patriarcado e eu gosto mesmo do lado bom das coisas!
O patriarcado eu quero chutar o saco e assistir agonizando feito gato esnobe de madame, dar coice que nem cavalo, bicho lindo o cavalo. Ver a cavalgada de um bicho desse é de encher os olhos de lágrimas, mas é emoção, não é choro que desagua, a vontade de ser bicho é o lado bom das coisas, mas o fato é que as coisas não tem só lado bom e aí eu lembro que desaprendi a chorar.