O Futuro das Bulas: Entre a Modernização Digital e a Inclusão Social

A transição para bulas digitais traz avanços, mas exige cuidado para garantir acesso e segurança a todos os brasileiros

Setembro é um mês crucial para a Agenda Regulatória da Anvisa 2026/2027. Até o dia 15 de setembro, a população pode opinar sobre a substituição das bulas impressas pelas digitais, um projeto-piloto já em andamento para alguns medicamentos. Entre os 115 temas em consulta pública, está a revisão das regras para elaboração, atualização e disponibilização das bulas — um tema sensível que impacta diretamente a adesão ao tratamento e a segurança do paciente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 50% dos medicamentos são usados incorretamente, muitas vezes por falta de informação adequada. Nesse contexto, a bula, seja impressa ou digital, é um instrumento essencial de saúde pública.

A proposta de substituir gradualmente as bulas impressas por versões digitais foi aprovada pela Anvisa em julho de 2024 e contempla medicamentos como amostras grátis, produtos para hospitais e clínicas, medicamentos isentos de prescrição em drogarias e os distribuídos pelo governo. O acesso à bula se dá por meio de QR Codes nas embalagens, com possibilidade de incluir vídeos, áudios e instruções complementares.

Não há dúvida de que a bula digital representa um avanço. Ela oferece informações atualizadas em tempo real, contribui para a sustentabilidade ambiental ao reduzir o uso de papel e amplia a acessibilidade com recursos multimídia. Trata-se de uma inovação que moderniza o acesso às informações sobre medicamentos no Brasil.

Porém, é preciso reconhecer que a transição digital não pode ignorar as desigualdades tecnológicas do país. No Brasil, cerca de 20,5 milhões de pessoas — um em cada cinco cidadãos, segundo o IBGE (2024) — ainda não têm acesso regular à internet. Isso significa que milhões de brasileiros, em sua maioria idosos, pessoas com baixa escolaridade ou moradores de áreas rurais, correm o risco de perder sua principal fonte de orientação sobre o uso seguro de medicamentos. Enquanto nas grandes cidades o acesso digital pode parecer simples e intuitivo, em muitos municípios do interior a realidade é outra: conexões instáveis, baixa inclusão digital e pouca familiaridade com QR Codes.

Se a bula física desaparecer, o resultado pode ser um aumento nos casos de automedicação, interações medicamentosas perigosas e até hospitalizações evitáveis.

A Agenda Regulatória é um instrumento de planejamento que confere previsibilidade e transparência à atividade regulatória normativa, permitindo que as partes interessadas se preparem para discutir e se adaptar a possíveis mudanças.

A Anvisa garante que a bula impressa continuará disponível mediante solicitação e exige que drogarias informem essa possibilidade aos clientes. Mas será que isso é suficiente? A participação popular na Agenda Regulatória é essencial para garantir que essa transição seja feita com responsabilidade, sem comprometer o direito à informação segura e acessível.

A sociedade pode — e deve — se manifestar para que a manutenção das bulas impressas seja uma prioridade regulatória, especialmente em medicamentos de uso cotidiano. A consulta pública é uma oportunidade rara de influenciar diretamente as decisões da agência.

Defender a manutenção da bula impressa não significa recusar a modernização. A digitalização das bulas é inevitável e bem-vinda, mas precisa ser acompanhada por uma política regulatória que assegure acessibilidade e equidade. Garantir a versão física não é um retrocesso — é uma forma de assegurar que o futuro da saúde no Brasil seja moderno, sim, mas também humano, seguro e inclusivo.

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Por Aline Alcântara

farmacêutica clínica e consultora do Grupo AMR Saúde

Artigo de opinião

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