Conheça quatro histórias que trazem à tona o machismo e abuso psicológico contra mulheres
O machismo e o sofrimento por meio de abuso psicológico é realidade para muitas mulheres; a advogada que trabalha com Desenvolvimento Humano e Empoderamento Feminino, Mayra Cardozo, fala sobre histórias que mostram essa realidade de formas diferentes
Não é novidade que o Brasil é um país estruturalmente machista em todos os seus espaços. Para se ter ideia, de acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no último ano, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência. Isso mostra que cerca de 17 milhões de mulheres, totalizando 24,4%, sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. É importante saber que as situações de machismo e abuso psicológico contra as mulheres acontecem em qualquer espaço, desde dentro do trabalho, até na rua ou dentro de casa.
De acordo com a advogada que trabalha com Desenvolvimento Humano e Empoderamento Feminino, Mayra Cardozo, o abuso psicológico é uma das violências mais comuns e tende a começar de uma maneira muito característica. “Normalmente, os abusos começam com o parceiro isolando a mulher dos seus recursos, então ela cria uma dependência já que não tem aspectos financeiros que dêem suporte para ela. É característico também que o parceiro isole a mulher da família e amigos, para que ele se torne o único recurso de proteção, conforto e carinho para ela. São homens extremamente machistas que, muitas vezes, impedem a mulher de trabalhar e sair, querendo que a mulher viva uma vida pautada na dele”, explica.
Além disso, a questão financeira é uma das principais formas que os homens tentam ter dominância sobre a mulher em relações abusivas. “O abuso psicológico vem também da mulher ser isolada financeiramente. São coisas que começam a acontecer dentro da dinâmica do relacionamento. O parceiro começa a colocar a mulher pra baixo, transparecendo que ele é alguém maravilhoso e ela não, que não faz nada direito. Isso acaba com a autoestima da mulher. Com isso, ela pode passar a não ter dinheiro e começa a viver na dinâmica que é intitulada pelo parceiro. Além disso, é comum que algumas pessoas usem o ciúmes como desculpa para ter atitudes como essas”, complementa a advogada.
Para esclarecer melhor o tema, a advogada listou quatro histórias que demonstram o machismo e abusos psicológicos contra as mulheres. Confira:
A série ‘Sex Life’
Um dos pontos centrais da série é a demonstração da liberdade sexual da mulher, algo que pode ser positivo, mas também ter alguns pontos negativos. “É importante quebrar tabus relacionados a sexo, mostrando que as mulheres também tem liberdade sexual e podem sentir desejos. Mas, o que acontece nessa série, é que acabam reduzindo os desejos sexuais da protagonista somente pelo fato do homem ter uma genitália grande. É como se o desejo sexual dela estivesse pautado somente nisso, o que acaba trazendo um tom bem machista para a série, que poderia ser sobre uma liberdade sexual que todas as mulheres têm”, explica Mayra.
Além disso, é possível observar as características de um relacionamento abusivo, em que o homem quer tudo do jeito dele e usa desculpas para todos os seus erros. “Nós, mulheres, somos criadas em uma sociedade patriarcal em que temos a função de ser a única responsável por fazer um relacionamento dar certo. A mulher carrega esse peso de ter que amar demais, aceitar demais, perdoar demais. Além disso, a série demonstra perfeitamente a forma em que, às vezes, as mulheres desistem de suas carreiras e são restringidas somente ao papel de mãe quando tem um bebê. É a perfeita demonstração da sociedade machista e patriarcal que acredita que o único e mais importante papel de uma mulher é cuidar do seu filho”, entende.
O documentário ‘Elize Matsunaga: Era uma vez um crime’
A série documental conta sobre a história de alta repercussão em que Elize Matsunaga assassinou e esquartejou o marido, Marcos Matsugana, o então CEO da empresa alimentícia Yoki, em 2012. “Eu acho que, pela primeira vez, conseguimos assistir a história de um caso em que podemos ver os dois lados, tanto o da vítima quanto o da pessoa que cometeu o crime, de uma maneira muito humanizada. O crime é um fruto social e, acho muito interessante, que a Elize conta o que levou ela a cometer o crime, os abusos psicológicos que ela sofria. No julgamento dela, sempre foram usadas questões pelo fato dela já ter sido prostituta, então a série consegue mostrar todo o machismo que permeou aquele julgamento, além da relação abusiva entre ela e a vítima”, esclarece a advogada.
Com toda a linha do tempo do documentário, já é possível perceber como a relação entre os dois começou de forma errada. “Era algo como um relacionamento abusivo mesmo porque ele afastou ela de todo mundo, ele quem tinha os recursos, ele que mandava na relação, até que ele começou a ter essa dinâmica com uma outra pessoa também. Outra coisa que ficou muito claro foi a forma de conduzir a relação, em que ele dizia que ela era louca e que iria interná-la. Mostra um lado interessante do abuso psicológico que ela sofreu e que também levou ela a cometer o crime. Além de tudo, mostra a questão da maternidade, no sentido de que ela não poderia ter cometido aquele crime por ser mãe. Uma outra questão interessante mostrada na série é que o tempo todo procuraram um ajudante para ela, como se ela não fosse capaz cometer um crime como aquele e ter feito tudo sozinha somente por ser mulher”, diz.
A série ‘The Bold Type’
Para a advogada, a série, que é inspirada na vida da ex-editora-chefe da Cosmopolitan, Joanna Coles, quebra alguns paradigmas interessantes. “Alguns movimentos radicais feministas passam erroneamente a ideia de que não gostar de homem é ser feminista, então muitas mulheres que são independentes, emponderadas e que lutam por causas sociais, deixaram de se rotular como feministas. Passou-se a entender que ser feminista é algo redical, que você não pode ser feminina. É, claro, uma visão errônea sobre o tema porque ser feminista não depende de gênero, sexo, daquilo que você gosta ou não gosta. Então, começou-se a entender que tem que existir um esteriótipo para ser feminista e a série vem justamente para quebrar isso”, explica Mayra.
É importante ressaltar que a pauta da série é baseada em um feminismo branco, norte-americano, que aborda questões de mulheres no mercado de trabalho, mas não se resume somente a isso. “O que eu gosto nesta série é que não é algo raso, eles trazem pautas de interseccionalidade, pautas sociais e relacionadas a pessoas refugiadas e imigrantes fazendo duras críticas aos Estados Unidos. É um seriado norte-americado, mas traz críticas interessantes e quebra com o estereótipo de que grupos específicos de mulheres podem ser femininas e outros não. Acho isso algo extremamente interessante e necessário, porque, quanto mais mulheres se intitulam feministas e lutam pela causa, mais as mulheres se unem”, acredita.
O livro ‘O conto de Aia’
Sobre ‘O conto de Aia’, a advogada costuma fazer um paralelo em relação aos dias atuais acreditando que, quem acredita que a história está distante dos dias atuais, muito se engana. “Atualmente, nós vemos um advento do conservadorismo, por exemplo, com o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e com o Presidente da República, Jair Bolsonaro. Na América Latina, vemos um conservadorismo extremo. Então, é algo que não está distante e nos mostra que o conservadorismo sempre vem com a repressão de corpos das mulheres, controlando a questão de natalidade, de ter filhos. É muito importante trazer essa questão para as pautas, ainda mais em um país como o Brasil que penaliza o aborto”, entende Mayra.
Para ela, muitas pessoas têm a visão de que a história mostra uma realidade paralela, mas é algo muito real atualmente. “Nós temos um governo homofóbico, segregador, que traz uma supremacia de uma determinada raça em detrimento aos outros e que já deixou muito claro o pensamento em relação às mulheres. Essa é uma história que nos faz pensar e refletir o quanto é importante lutar por algumas pautas contra o totalitarismo, contra o monopólio de força por parte do Estado, e contra políticas ditatoriais. É importante ter a ideia de que pautas de direitos humanos são pautas que não estão asseguradas para sempre”, completa.
Em relação aos Direitos Humanos, muitos direitos já foram conquistados, mas é importante continuar lutando para mantê-los. “A verdade é que sempre pode aparecer alguém no poder que vai tentar tirar os direitos humanos da sociedade. Podemos ver isso claramente acontecendo no Afeganistão, com a volta do Talibã ao poder. Em ‘O conto de Aia’, isso fica muito claro quando é mostrado uma sociedade normal e, do nada, um populista assume o poder e instala uma ditadura. Essa história nos traz uma noção do quanto temos que estar sempre vigilantes pelos nossos direitos, vigilante por manter uma sociedade em que possamos falar e tenhamos domínio sobre o nosso corpo, e está constantemente lutando para garantir isso”, conclui a advogada.