ICMS não é imposto de importação ou exportação: por que a comparação é equivocada

por Ulisses Dalcól

O recente debate que contrapõe a política tarifária dos EUA ao modelo brasileiro de isenção do ICMS para produtos primários e semielaborados, instituída pela Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996), parte de uma confusão conceitual grave: tratar o ICMS como se fosse um imposto de importação ou exportação. Essa equivalência é incorreta sob a ótica jurídica, econômica e federativa.

1. Natureza jurídica distinta dos tributos

O imposto de importação e o imposto de exportação são tributos federais, previstos no art. 153, II e III, da Constituição Federal, e têm caráter eminentemente extrafiscal — ou seja, sua função principal não é arrecadar, mas regular o comércio exterior, protegendo setores estratégicos ou ajustando a balança comercial.

Já o ICMS é um imposto estadual (art. 155, II, CF), de natureza fiscal, cuja função central é financiar as atividades ordinárias dos Estados e do Distrito Federal, incidindo sobre operações internas e interestaduais de circulação de mercadorias e serviços. Ele não é instrumento de política comercial externa; é fonte de receita federativa.

2. Exportações e o princípio da não cumulatividade

A Constituição (art. 155, § 2º, X, “a”) veda expressamente a incidência do ICMS sobre operações que destinem mercadorias para o exterior. Essa regra foi inserida pela Emenda Constitucional nº 42/2003, mas já vinha prevista na própria redação original com base no princípio de que não se exportam impostos — premissa utilizada para garantir competitividade internacional ao produto brasileiro.

Cobrar ICMS na exportação encareceria o produto no mercado global, reduzindo margens e prejudicando setores que dependem fortemente da demanda externa. Essa lógica não se aplica da mesma forma ao imposto de exportação, que é calibrado de forma pontual e estratégica, com alíquotas específicas, para setores e conjunturas muito delimitadas.

3. Funções diferentes: extrafiscal x arrecadatória contínua

O caso citado do governo Trump, com tarifas sobre chips, é um uso extrafiscal do imposto de exportação: objetivo estratégico e de política industrial. Já o ICMS não é calibrado caso a caso — ele segue regras gerais de incidência sobre uma ampla gama de operações, integrando a rotina fiscal dos Estados.
Misturar esses dois instrumentos é como comparar um bisturi a um martelo: ambos cortam, mas têm funções completamente distintas.

4. A Lei Kandir e a compensação aos Estados

A crítica de que a Lei Kandir “esvaziou” a receita estadual ignora um ponto: o próprio texto legal previu mecanismo de compensação financeira pela União (art. 31 da LC 87/96). O problema não está na isenção em si, mas na subexecução e insuficiência desses repasses, que ao longo dos anos geraram insatisfação federativa.
O debate, portanto, não deve ser se o ICMS deve ou não incidir sobre exportações (o que esbarra em vedação constitucional e risco competitivo), mas sim como tornar efetiva e justa a compensação.

5. Impacto econômico de tributar exportações pelo ICMS

Cobrar ICMS sobre exportações significaria:

  • Aumento do custo Brasil, tornando nossos produtos menos competitivos.

  • Possível retaliação comercial em acordos internacionais, já que a tributação poderia ser considerada barreira ao comércio.

  • Efeito regressivo regional, pois Estados exportadores líquidos de commodities sofreriam mais, com possível fuga de investimentos.

O imposto de exportação, por sua vez, quando aplicado de forma pontual, é setorial e estratégico, e não compromete a política de competitividade de todo o parque produtivo.

Ajustar a política, sem confundir os instrumentos

A comparação direta entre a tarifa americana sobre chips e a incidência de ICMS no Brasil não se sustenta juridicamente nem economicamente. O ICMS não é e não deve ser tratado como um imposto de exportação; são instrumentos de natureza, finalidade e competência distintas.
Se o objetivo é aumentar a arrecadação estadual e fortalecer a industrialização, o caminho passa por:

  1. Revisar e aprimorar a compensação da Lei Kandir.

  2. Avaliar uso estratégico do imposto de exportação federal em setores específicos de alto valor agregado ou impacto ambiental.

  3. Fortalecer políticas industriais que aumentem a transformação local de matérias-primas antes da exportação.

O debate precisa ser técnico e fundamentado, evitando atalhos retóricos que confundem tributos e suas funções constitucionais.

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