“Ah, vida real: como é que eu troco de canal?”: o uso problemático de álcool e outras drogas como questão de nossos tempos
*Por Henrique Costa Brojato
A frase que dá início ao título deste pequeno texto está presente numa música, dos Engenheiros do Havaí, banda de rock brasileira dos anos 1980. Ela é cantada no refrão, parte importante de canções, que, geralmente, possui um apelo importante para a repetição. Em outras palavras, é geralmente a parte da música que mais facilmente tendemos a memorizar, a “grudar” na cabeça. Daí talvez, ao final desta canção, a complementação “como é que eu troco de canal?” é substituída por um simples “tchau”, dando a ideia de uma necessidade do eu lírico da canção de se despedir de algo do campo do insuportável, inerente à existência, tal qual ela é, a famigerada vida real.
Ora, o que temos vivenciado atualmente pode ser um cenário que se aproxima muito desta máxima. Quantas vezes não pensamos em formas, meios ou até subterfúgios para superar momentos de grande desamparo e angústia, presentes na leitura de notícias em nossas infinitas linhas do tempo de aplicativos de redes sociais, ou mesmo nas burocracias, tão necessárias à lógica de vida em sociedade; já se questionou se vivemos quando não lidamos com a burocracia ou se vivemos justamente para responder às burocracias? Não? Bom, talvez a partir da leitura deste texto você poderá considerar essa dúvida, que nos aproxima de uma expressão da realidade presente em textos do autor Franz Kafka, como em O Processo ou A Metaformofose.
Digressões à parte, trago essa frase para servir de preambulo para uma questão social – ou psicossocial e antropológica, ou mais que isso – que é o uso de drogas na contemporaneidade. O uso de drogas sempre esteve presente na história da humanidade. Sempre. Por isso, talvez, a necessidade de discuti-lo considerando a complexidade inerente à cada substância psicoativa, à cada contexto de uso, à cada sujeito que faz o uso. Pois para compreender essa questão tão complicada precisamos sim desse tripé, que olhe para o sujeito, a substância utilizada e, por fim, o contexto em que esse uso é realizado; só dessa forma poderemos ter uma leitura mais próxima dos possíveis danos que podem ocorrer desse uso.
Contudo, vale ressaltar que o uso de substâncias psicoativas, para além dos discursos policialescos ou mesmo moralistas, traz ao usuário, em geral, uma sensação de afastamento da realidade, que, a princípio, pode parecer prazeroso. E essa é a grande problemática desse tema. Quando abordamos com adolescentes, por exemplo, as implicações do uso de drogas, e, por má-fé ou ignorância mesmo, deixamos de lado aquilo que as drogas representam tanto do ponto de vista social, quanto da interação com o organismo, dimensões que trazem uma faceta atrativa, deixamos a oportunidade de realizar um debate qualificado e “pé no chão”, que traria conhecimentos importantes para a tomada de decisão.
Sendo assim, falar do uso problemático de álcool e outras drogas atualmente nos direciona à urgência de contextualizar tal comportamento numa perspectiva que olhe para o sujeito de maneira integral. O que quero dizer com isso? Quero dizer que o fato de alguém realizar um uso danoso de substâncias psicoativas não deve ser considerado como uma falha moral ou de caráter. Pelo contrário, precisa ser considerado em sua complexidade, a partir de políticas de saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, objetivando assim a redução dos danos oriundos desse uso problemático, independentemente da substância.
E o que nos faz, enquanto seres humanos, aderir ao uso problemático de substâncias psicoativas? São diversos os motivos, de acordo com a diversidade humana. Contudo, importa considerar que, recentemente, a pandemia nos fez próximos de nossa vulnerabilidade de tal forma que, em diversas pesquisas realizadas, ficou claro o aumento da incidência do uso de álcool e outras drogas no Brasil e no mundo. O que mais chama atenção é que as pesquisas apontam que o aumento se concentra, principalmente, na faixa etária de 18 a 24 anos, dado alarmante quando consideramos as implicações do uso abusivo de álcool e outras drogas na juventude. Parece que o uso de substâncias psicoativas foi uma das formas de “mudar de canal”, uma válvula de escape, diante de uma realidade tão aterradora e marcada por incertezas e vulnerabilidades.
Agora, resta pensar alternativas diante desse cenário, que demonstra aumento de 18% no uso de álcool e 34% no uso de tabaco, de acordo com pesquisa desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz, no primeiro ano de pandemia. Importa considerar que as possíveis respostas ao fenômeno do uso problemático de álcool e outras drogas precisam ser consideradas numa lógica que não reproduza violências ou outros padrões iatrogênicos, ou seja, padrões que acabam piorando a condição de quem busca ajuda. Logo, diante desse cenário, é importante contar com uma rede de apoio, sejam familiares, amigos ou profissionais habilitados. Além disso, a pessoa que se encontra em situação de uso problemático de álcool e outras drogas necessita conhecer seus próprios limites, para que possa construir, junto com o apoio de profissionais de saúde, um conhecimento sobre os padrões danosos do uso de substâncias psicoativas; só assim é que se pode criar um conhecimento sobre quais situações ou gatilhos levam a pessoa ao uso abusivo, acarretando assim danos sociais e à saúde.
É importante pensar que nem sempre será possível mudar de canal. É importante considerar que a vida, diante de seus desafios constantes, nos coloca em situações de vulnerabilidade que exigem de nós a criação de saídas, ou mesmo de resistências, diante da sensação de desamparo. No limite, precisamos lembrar que a temporalidade da vida pode nos ensinar que nada é para sempre, restando a nós criar fatores de proteção à saúde capazes de proporcionar um uso mais consciente – seja ele recreativo, pontual – ou mesmo assumir a opção pela abstinência.
Finalmente, se o uso de álcool e outras drogas não é um fenômeno exclusivo de nosso tempo, resta identificar o que faz do nosso tempo um tempo propício ao aumento do uso problemático de substâncias psicoativas. Nessa lógica, pensar alternativas como sociedade é pensar em políticas públicas que promovam saídas pela arte, pelo acesso a bens materiais e culturais, assim como, tratamentos que considerem a realidade das pessoas, privilegiando a liberdade à restrição de liberdade. Talvez assim possamos promover melhores condições para a constante superação dos danos oriundos do uso problemático de álcool e outras drogas, mesmo vivenciando as consequências da pandemia em nível global.
Henrique Costa Brojato – Psicólogo, Mestre em Educação (PUCPR) e Professor da Estácio Curitiba