Consciência Negra: To Be or Not to Be Black?
*Por Samanta Lopes
Recentemente, fui questionada por uma pessoa que não é negra sobre os porquês de se falar de “consciência negra” e usar expressões enegrecidas para promover o antirracismo, pois, na opinião dela, tais questões parecem afastar ainda mais as pessoas.
Desta forma, como pessoa negra, venho trazer alguns fatos para contextualizar o que é ser negro no Brasil, afinal vivemos em uma sociedade em que a maior parte dos termos e expressões tidas como “populares” são masculinas e voltadas a fortalecer o que é branco, em detrimento do que é preto.
Vamos a alguns exemplos:
· “Dia de branco” – subentende-se que os brancos trabalham, logo os negros não.
· “Alma branca” – para se referir àquela que é boa, logo alma negra não é.
· “Santos brancos” – pois entende-se que os negros são de matriz africana e não são santos.
· “Serviço de preto” – quando querem dizer que algo foi malfeito.
· “Mercado negro” – Quando se trata de negócios ilegais.
A partir destas, entre outras expressões, podemos entender que nossa linguagem tem vieses preconceituosos e racistas. Para sermos antirracistas, temos de banir definitivamente essas expressões e os nossos ouvidos precisam se sentir incomodados quando as escutarem como se fossem politicamente corretas ou de cultura popular, afinal, elas não são. E neste último caso, acredito que a gentileza e o respeito do “aviso” devem prevalecer, sem calar o recado “você está usando termos racistas”.
Eu me autodeclaro como mulher negra. E por que uso o termo negra? Porque a ONU, Conceição Evaristo, bell hooks, Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro, entre tantas outras mulheres que defendem e pesquisam sobre as interseccionalidades vividas pelas mulheres de cor, usam o termo “mulher negra” para falar das pretas e pardas ao redor do mundo.
O colorismo é uma parte da negritude que precisa ser estudada. Somos compostas de peles mais claras às mais retintas, temos a largura do nariz diferente, a grossura dos lábios e textura dos cabelos variadas, e tudo isso, desde muito tempo, é usado contra nós para criar separações. Quanto mais clara a pele e mais perto dos traços europeus, menor é a chance de sofrermos agressões por racismo: a passabilidade nos coloca em lugares de privilégio, em que somos lidas como “não negras” – o que não impede que, em uma situação em que haja uma pessoa lida socialmente como branca, imediatamente nosso papel social mude para pessoa negra.
Nessas horas, é importante lembrar de um questionamento básico: “be or not to be black?” Trouxe em inglês, porque herdamos das ações que os grupos negros realizam nos Estados Unidos, boa parte do que temos feito hoje por aqui. Movimentos como #blacklivesmatter, entre outros, deveriam ser iniciados no Brasil: país onde um jovem negro morre a cada 23 minutos. No entanto, tais movimentos só acontecem quando uma onda se inicia em terras mais ao norte do Continente Americano no qual vivemos, afinal ainda somos da América do Norte, América Central e América do Sul.
Temos vários pontos que precisam ser revistos nessa luta antirracista. Um deles é o de que, no Brasil, temos o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, em homenagem à data da morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695). Esse líder negro morreu defendendo o Quilombo dos Palmares e seus moradores. Nem mesmo esse registro histórico consegue conscientizar as pessoas para a necessidade de posicionamentos antirracistas. Foram mais de 30 mil pessoas negras mortas no confronto para romper as proteções do quilombo. Temos mais pessoas negras nas prisões e mortas em confrontos nas comunidades do que em algumas das maiores guerras do mundo. Porém, ainda hoje, sempre que um grupo se “aquilomba”, sofre represálias para se dispersar. Ou seja: ainda somos impedidos de criar grupos de fortalecimento mútuo, porque somos vistos como insurgentes, mas nossa mão de obra, refém de ser contratada com menor custo, é requisitada e inclusive vista como potencial de consumo para produtos e serviços não pensados para nós.
Mesmo após 326 anos, continuamos em um cenário desfavorável, afinal, declarar-se negro é assumir toda uma ancestralidade e todo o peso que o racismo estrutural nos impõe. É enfrentar todas as barreiras de acesso às oportunidades de mobilidade social, aumentadas consideravelmente por conta da nossa cor de pele, assim como muitas vezes, do nosso CEP e do nosso sobrenome.
Então, voltando à pergunta inicial da pessoa não negra sobre para que falar de “consciência negra”, ou sobre como falar de antirracismo é potencializar atritos e promover mais distanciamento entre os grupos, reafirmo: precisamos que todas as pessoas sejam e defendam comportamentos antirracistas, sejam elas da cor de pele que for, porque o racismo mata.
É ele quem determina a direção de cada bala perdida e de cada violência contra mulheres negras, porque continuamos sendo vistas como propriedade e não como pessoas com direitos à vida digna como qualquer outra com cidadania.
O racismo determina onde vamos morar, porque a grande maioria das pessoas negras não têm recursos para comprar propriedades em áreas mais nobres, afinal a faixa salarial de uma mulher negra é um terço do valor que recebe um homem branco com formação equivalente.
Não queremos mudar nossa cor de pele, queremos apenas que haja respeito por sermos humanos, queremos espaço para mostrar nosso orgulho de ser quem somos, da ancestralidade que nos compõe e dos sonhos que nos movem. Queremos mostrar o quanto nossa tecnologia mudou e continuará mudando o mundo, porque muito do que hoje nas histórias é declarado como criação de pessoas brancas começou com pessoas negras na África, e até mesmo aqui no Brasil.
Então, “be or not to be black” é uma escolha de vida, uma decisão que mudará o mundo de cada um que se autodeclara negro. Enquanto houver racismo, sempre haverá vários paredões entre nós e a dignidade equânime de acesso às oportunidades de crescimento pessoal. Assim como nos disse Viola Davis no Emmy de 2015: “Deixem-me dizer algo a vocês: a única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem”.
Hoje, não conseguimos sair do lugar que a sociedade reservou para os negros, a menos que novos papéis sejam criados. Por isso, peço que pessoas não negras, ou “cara gente branca”, parem de tentar justificar seus privilégios com a frase “somos todos iguais”. Não queremos ser iguais, só queremos oportunidades reais para mostrarmos nosso potencial, porque para nós: se a coisa está preta é porque está MUITO boa! Esse é o novo hoje que queremos viver!
*Samanta Lopes é coordenadora MDI da um.a #DiversidadeCriativa, agência de live marketing – uma@nbpress.com