Entre Tramas e Beijos – Ronaldo Fraga – SPFWN52

Por Ronaldo Fraga

Assim como as hortaliças não nascem nas gôndolas dos supermercados, as roupas também não nascem nas vitrines, sob a luz branca dos shopping centers. Roupas são formadas por um emaranhado de veias e artérias, que são tramas e urdumes de fios e linhas. Elas ganham alma com as histórias particulares de quem as usam. E ganham vida com a cultura e os desejos do tempo vivido.

Roupa é memória vestida num tempo. O velho tear, que tece as tramas para se vestir, foi e sempre será, independentemente das novas tecnologias da fiação, o ponto de partida dessa fascinante história de amor entre pessoas e roupas.

Nesse contexto, a indústria têxtil é mais uma indústria geradora de produtos, emprego e renda. Sua força se faz presente enquanto vetor de afirmação cultural vestindo a casa do corpo e o corpo da casa. E a importância do seu significado permeia muitas esferas – social, cultural, econômica e política de um país – a ponto de influenciar um estilo de vida de uma época, sendo capaz também de traduzir seus desejos de mudanças ou a permanência de suas tradições.

A história da produção têxtil está profundamente ligada à história do Brasil. O primeiro registro que aponta essa relação é um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal. Nela há referência de uma mulher com uma criança no colo atada aos peitos com um pano “não sei de quê”. Mais adiante, eles citam que “as casas tinham por dentro muitos esteios, e de esteio a esteio, redes atadas por cabos”. Ou seja, o algodão já era tecido pelos indígenas muito antes da chegada dos portugueses.

Alguns séculos depois, em função do aumento do contingente de escravizados, a produção têxtil foi a primeira a ser autorizada pelo reino de Portugal a ser instalada em terras brasileiras. Afinal, de onde iam tirar pano para vestir tanta gente? Inicialmente, foram instaladas em fazendas de cana de açúcar no nordeste brasileiro, daí o termo “fazendas”, usado antigamente para designar corte de tecido de algodão. Em fins do século 18, a rainha de Portugal, Dona Maria – a louca – sob pretexto de que essa terra jamais teria vocação para nada além do extrativismo, resolveu coibir a produção que ganhava força naquele período. A monarca cedia à pressão da Inglaterra que, em troca da compra de ouro brasileiro, precisava despejar por aqui tecidos e quinquilharias em franca produção pela indústria inglesa. A história volta a se repetir tempos depois, revelando a permanência de uma dinâmica de exploração que já conhecemos… o minério, a soja, os chineses…

Portanto, essa indústria que existe na insistência, pode nos dar muitas lições de “reexistência”. E não é de hoje! O mapa da colonização brasileira tem em seu desenho marcas profundas da presença da produção têxtil em sua formação. Ele passa pela cana de açúcar do Nordeste, pela corrida do ouro em Minas, pelo desbravamento e formação do estado de Santa Catarina.

Karl Renaux, alemão de espírito empreendedor, instalou em Brusque um armazém de secos e molhados e, em 1892, montou a primeira tecelagem na região para vestir os colonos alemães, poloneses e italianos. Em 1918, é nomeado cônsul na Europa e monta no Brasil uma fábrica para produção de tecidos para decoração. Daí para produção de tecidos de moda bastaram algumas décadas.

Meu primeiro emprego foi numa loja de tecidos. Ali aprendo a ouvir a voz e suspiros dessas tramas mágicas. Os tecidos pedem para se transformarem nisso ou naquilo e também esperam ser transgredidos, por decoradores e criadores de moda.

Quinze anos atrás desenvolvi tecidos exclusivos, curiosamente para uma coleção chamada “A loja de tecidos”, com a catarinense Renauview. A fábrica iniciava investimentos na fabricação de jacquards de última geração para vestuário. Dessa coleção vieram muitas outras e, desde então, duas vezes por ano, me esbaldo no parque de diversões têxteis, transformando em novas tramas tudo o que me alumbra.

Acredito que o papel do designer brasileiro é tecer pontes entre o Brasil feito à mão e o Brasil industrial. Para essa coleção, fui desafiado a criar uma coleção 100% nas bases de jacquard, das roupas aos sapatos, das bolsas aos óculos, tudo feito nessa trama que muitos, erroneamente, confundem com estampas. Resgato desenhos florais criados há 100 anos, usados nas cortinas, produzidos na antiga fábrica Renaux. São flores que um dia vestiram paredes e janelas do Brasil e agora vestirão diferentes corpos e histórias para uma grande festa que é a moda.

É também o resgate da fantasia tão necessária nesses tempos cinzas e áridos. Foram desenvolvidos diferentes pesos e histórias de amor entre fios de algodão e fios de seda, linho e viscose. Reforço o papel da roupa e tecidos como manto de sustentação na construção de personagens diários e como molduras na parede da memória de cada um. A cultura de um lugar se manifesta na forma como as pessoas moram, comem, festejam e, principalmente, no que elas vestem. E a soma de tudo isso se chama vida.

 

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