Perdão, Henry!

Estávamos muito ocupados frente às telas enquanto você era tirado de nós

Para ler ouvindo: Cálice – Chico Buarque 

 

 

Perdão, Henry, por tanta negligência com a voz infantil.

Perdão, Henry, por todo julgamento sobre seu choro ser tentativa de manipulação e não o pedido de socorro que era de fato.

Perdão, Henry, por você ter tido uma mãe que acreditou ser possível e considerou razoável continuar no shopping enquanto você era covardemente ameaçado e agredido.

Perdão, Henry, por toda uma cultura que muitas vezes normaliza a violência tal qual a do seu torturador e assassino como forma aceitável de educação até que o pior aconteça.

Perdão, Henry, por sua babá ter procurado a pessoa que mais deveria zelar por sua integridade e segurança e não diretamente a polícia quando ainda havia alguma chance de te salvar.

Perdão, Henry, por cada chute na sua cabeça, tronco, braços e pernas, mas, sobretudo, pela dor que deve ter sentido no seu coraçãozinho puro o suficiente para entender que aquilo era cruel e que jamais poderia ter acontecido.

Perdão, Henry, pela tragédia que não foi evitada sob a ótica de um novo horizonte amoroso e profissional da sua genitora.

Perdão, Henry, por seu pai não ter atendido seu pedido de ficar com ele, de não voltar para seu algoz naquela noite.

Perdão, Henry, por seus sintomas fisiológicos decorrentes do pavor, como o vômito, terem sido considerados “reações normais” de uma criança na sua idade em meio a uma separação dos pais e diante da convivência com um desconhecido.

Perdão, Henry, porque os adultos se consideram bons o bastante, fortes o suficiente e psicologicamente bem resolvidos enquanto choram encolhidos no banheiro e descontam suas frustrações nas redes sociais ou em ataques de fúria contra crianças indefesas como você.

Perdão, Henry, por exigirmos de ti o controle emocional que sequer temos.

Perdão, Henry, por pedirmos gritando para você não gritar, por te ensinarmos que é feio bater te batendo, por falarmos sobre empatia, generosidade e compaixão demonstrando o pior de nós no dia a dia.

Perdão, Henry, pela exaustiva conexão com o mundo virtual que nos tirou precioso tempo de olhar para o lado e te ver.

Perdão, Henry, por uma sociedade capaz de dizer que um bebê de dois meses chora para chamar a atenção e fazer manha e um mero post tem toda nossa atenção prontamente.

Perdão, Henry, pela era da escassez de colo em que vivemos, como se fosse algo ruim e prejudicial estar presente e te acolher nos braços cada vez que você acordava durante a série que passava na TV.

Perdão, Henry, mas havia muita coisa a ser feita no trabalho que impediu de te ouvirmos.

Perdão, Henry, mas você precisava ir à escola, obedecer e, principalmente, não chorar para poder visitar a vovó e o vovô… chorar, Henry, você tinha que parar de chorar.

Perdão, Henry, porque o “tio” é político influente e apesar de não ser seu pai ele é bem-sucedido e estava te dando uma lição necessária, pois o problema era sua insistência em “incomodar” sua mãe enquanto ela tentava relaxar.

Você nunca esteve errado, Henry.

Sim, Henry, na sua idade queremos dormir com os pais, queremos alguém para segurar nossa mão ao acordarmos no meio da madrugada e necessitamos de carinho. A maioria de nós cresce e continua querendo tudo ou parte disso, ao mesmo tempo em que deslegitimam  cinicamente as necessidades da infância em detrimento da correria.

Perdão, Henry, por cada armadilha do ego que por pura vaidade e egoísmo tirou sua vida debaixo dos olhos de quem o gerou e pariu.

Perdão, Henry, por um período aterrorizante em que você foi capaz de dizer que estava cansado e preferia dormir à brincar por desespero diante da morte iminente.

Você foi o único que percebeu, sentiu e viveu tudo isso sozinho, aos quatro aninhos, Henry. Perdão!

Perdão, Henry, pelos – no mínimo – três apelos que inutilmente você fez à mamãe,  por não ter gritado alto o suficiente para um vizinho intervir, por não ter tido tamanho para se defender ou lutar de igual para igual com o monstro que morava junto com você.

Perdão, Henry, pelos 39 minutos que demoraram para te levar, a essa altura já sem vida, ao hospital.

Perdão, Henry, pelas brechas na lei que ainda farão com que seu assassino volte a viver e tenha, inclusive, o direito à liberdade.

Perdão, Henry, pelo seu desenho da sua casa com grades que ilustravam a prisão que vivia e justificava sua completa aversão ao novo “lar” e não teve a merecida atenção.

Perdão, Henry, porque enquanto atravessamos uma pandemia mundial, triste e avassaladora, você vivia seu calvário particular dentro de casa.

Perdão, Henry, por um mundo tão vil que te tirou precocemente o brilho no olhar e a esperança antes mesmo de te paralisar completamente. Por um mundo que relativiza dores e empurra as vítimas ao abismo.

Perdão, Henry, pelas selfies sorrindo nas quais você já não estava mais do lado.

Perdão, Henry, por nosso choro e lamento de hoje não ter te salvado e por cada criança que ainda passa pelo seu martírio e que também não conseguiremos proteger.

Perdão, Henry, por morar num país que mata suas crianças e adolescentes mais do que os conflitos na Síria e Iraque.

Perdão, Henry, perdão.

Até o outro lado!

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