Filhos não dão trabalho

Tem dias, mesmo que não todos, nos quais precisamos fechar os olhos e ao abrí-los voltarmos um novo olhar aos pequenos milagres

Para ler ouvindo: Todo homem – Zeca Veloso, Caetano Veloso, Moreno Veloso ft. Tom Veloso

 

Pronto, enlouqueceu! Pensa você, querido leitor, diante do título da coluna desta semana. Se focarmos que estamos há um ano numa pandemia completamente descontrolada no Brasil por ausência quase que total de gestão, é perfeitamente razoável pensar isso. Mas não, ainda não. Coloca a exaustão nessa conta: isolamento social, falta de perspectivas, vacinação a conta gotas, medo do futuro. É ou não é motivo pra estar surtada? Tem dias que eu surto, pra ser bem honesta. Só que nem isso, gente. Então repito: filhos não dão trabalho.

Eu estava pensando umas coisas, fazendo umas reflexões que surgem organicamente, e elaborei um negócio aqui rapidão sobre fatos que me dão muito mais trabalho ultimamente.

  • Acordar todo santo dia no mesmo horário, ir para o mesmo  trabalho, fazer as mesmas coisas, ganhar o mesmo salário por anos, não ter o reconhecimento tão batalhado, ser preterido por alguém com um bom QI (quem indica), faltar grana para a viagem nas férias, ter que adiar planos por conta do orçamento sempre apertado, passar fome, não ter respaldo do próprio imposto que paga, lidar com preconceitos, injustiças sociais e despejos em meio a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, aguardar por um novo auxílio que não atende metade das necessidades de uma família de quatro pessoas, muitas privadas de sair às ruas buscar sustento na atividade diária que garantia a comida na mesa;
  • querer estudar e não ter oportunidades, estar desempregado, resolver empreender,  ver o quanto é difícil, falhar e desistir, arranjar um subemprego correndo riscos e ganhando pouco, ouvir que o governo baixou a taxa por conta de vagas absolutamente degradantes e colocou na conta do “bem-sucedido” mandato;
  • estar nas redes sociais e ver conhecidos chamando professores de comunistas e exigindo que fossem filmados em sala de aula, negando a ciência, desacreditando de vacinas, indicando medicamentos sem eficácia comprovada, consequentemente pessoas fazendo transplantes de fígado aos montes por causa desse obscurantismo, colocando médicos que estão na linha de frente no combate ao Covid à prova, desrespeitando organizações internacionais amplamente reconhecidas e respeitadas em detrimento de mensagens do zap, defendendo políticos como se fossem santidades, atacando levianamente a imprensa e os milhares de trabalhadores que pertencem à classe (na qual me incluo, juntamente com meu marido);

Pega um ar.

  • um ano inteirinho de aulas on-line com pais, responsáveis e cuidadores resistentes à ideia de que é preciso respeitar a professora que está do outro lado da tela e que tudo o que estamos passando não é motivo para não fazê-lo, que professoras também são filhas, mães e mulheres vivendo uma pandemia e tendo que se readaptar na forma de ensinar – muitas vezes sem o apoio das escolas onde atuam, colégios particulares seguindo o cronograma de conteúdo como se estivesse tudo normal às custas da sobrecarga de professores e desequilíbrio emocional dos alunos, escolas públicas sem a infraestrutura adequada, diminuindo a distribuição de merendas e exigindo o dobro daqueles que já estão acostumados a levar a educação nas costas,
  • a ânsia de querer passar um tutorial explicando que não custaria nada ter uma conversa com o filho, especialmente se ele já tem um nível maior de entendimento, sobre a importância da coletividade e no quanto isso impacta a vida de todos, que atender uma ligação de trabalho ao lado da criança que está conectada não o ajudará na lição e muito menos nos tornará mais sagazes (quem sabe exibicionistas) se estivermos resolvendo algo importante,
  • limpar a casa 3456 vezes por dia jogando água sanitária em tudo, tirando sapatos na porta, higienizando compras, passando álcool em gel, lavando as mãos como nunca, roupas gastas de tanto sabão, crise hídrica, vizinhos descumprindo regras e andando sem máscara na área comum do condomínio, o síndico que não age por estar em ano de eleição, aflição constante a cada necessária ida ao mercado, à farmácia ou logo ali levar o lixo para dar uma saída do apartamento,
  • mais de 20 crimes de responsabilidade e nenhuma ação efetiva, um país em colapso na saúde, nas funerárias, na economia, acima de tudo quanto é gráfico de novos casos, de transmissão, de mortes, quem deveria cuidar brincando com a vida no discurso de ódio e na prática sem pudores, sendo apoiado com argumentos vis pautados em ideologias fanáticas e absolutamente disfuncionais,
  • a linha nada tênue da opinião, da liberdade de expressão e dos recortes individuais deslegitimando falas de especialistas, o conceito de limite ético e sobrepondo toda tentativa de diálogo que tenha o mínimo de senso crítico e de visão de mundo (para além do próprio umbigo), sem falar nas fake news, que seguem sendo compartilhadas sem responsabilidade e responsabilização;

Cansou? A realidade do brasileiro anda disso pra pior, muito pior. A essa altura o pequeno anjinho que está aí do seu lado e já andou de patinete pela casa, pediu 20 coisas pra comer (oh, sorte de ter o que oferecer e atender todas as vezes), fez birra prestes a começar mais uma aula on-line, teve preguiça de estudar, preferiu a tela do tablet – entre tantas outras situações que principalmente as mães sabem – nem parece dar tanto trabalho assim, não? Ele está cansado, se sentindo sozinho, com medos que antes nem lhe ocorriam por conta de tudo que agora ouve e vê ao seu redor. Tanto tempo sem interagir pessoalmente com outra criança da mesma idade, o que me parte o coração.

Pipoca, chocolate, filme, tarde do cineminha. Dia do Sim, como no filme novo da Jennifer Garner recém-lançado, em proporções não hollywoodianas. Esconde-esconde, pega-pega, desenhar com espuma no box. Com quintal, nem sei o que te sugerir, mas sei que seria possível ampliar e muito essa lista. Tipo pegar um dia da semana qualquer, se conseguir ou sobrar disposição pra planejar, e dar esse tempo a vocês. Independentemente das nossas obrigações, do quanto o trabalho é de fato importante neste momento, nossa criança não irá desaparecer (GRAÇAS A DEUS). E ela precisa de nós tanto quanto precisamos dar conta de todo o resto que nos propomos a fazer.

Quem sabe baixar a guarda seja um bom caminho pacífico para que o vírus também não destrua nosso vínculo mais importante: com nossos filhos e suas infâncias.

Até a próxima!

Patricia Pavloski Perez

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