O sal da vida

Existe uma força, quase imperceptível, que nos define e impulsiona e desconfio que ela more na simplicidade do dia a dia

 

Para ler ouvindo: Dia Lindo – Dazaranha

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Há algumas semanas, uma amiga muito especial leu minha coluna e comentou: “me fez lembrar o livro O Sal da Vida”. Fui procurar saber, claro. Devorei meu exemplar em poucas horas. Inicialmente, cheguei a duas conclusões: a primeira, que tenho a honra de ser lida por alguém tão inteligente e sensível. Passado o choque, o segundo momento trouxe ainda mais luz ao que já busco no meu cotidiano, incluindo linhas diversas da obra em pensamentos que correm soltos pela minha mente ao longo dos dias de uma quarentena e de quase 35 anos (completo mês que vem).

 Em resumo, a renomada antropóloga francesa, Françoise Héritier, elabora uma meditação que funciona como uma espécie de poema em prosa em homenagem à existência. Segundo o prólogo, existe uma forma de leveza e de graça no simples fato de existirmos. Algo que vai além da famigerada “correria”, tão amplamente cultuada atualmente como sinônimo de produtividade. Uma poderosa ferramenta para irmos além dos sentimentos poderosos e dos engajamentos políticos, por exemplo (fundamentais, óbvio). Um quê que ela chama de plus e é dado a todos. Já adivinharam? Sim, o sal da vida.

 Com graça e delicadeza, Héritier vai atrás das pequenas coisas agradáveis, e às vezes nem tanto, que permeiam o mais profundo do nosso ser: imagens e emoções de momentos marcados por recordações que dão sabor à rotina. Não foram poucos os episódios diários que me fizeram sorrir e se eu contasse a alguém pareceria absolutamente desinteressante. No entanto, haviam mudado meu humor ou até mesmo minha perspectiva de futuro. Diante do contexto, entendi que valorizar tais acontecimentos é abrir o coração para aquilo que torna nossa passagem por este plano mais rica e interessante. Querem ainda a melhor parte? Trata-se de gestos, cheiros, visões, esbarrões, sorrisos, beijos e abraços que ninguém poderá nos tirar, JAMAIS.

 

Este livro só tem um problema: ele acaba. Mas a ideia é que seja saboreado e devorado, lido e relido, ad arternum. Ao final, algumas páginas com linhas em branco sugerem que nossa lista seja rabiscada ali mesmo. Resolvi então compartilhar aqui com vocês um pouquinho do que me impulsiona e quase define. Meu inventário de felicidade!

·      Dormir bem, ser o tipo de pessoa que deita a cabeça no travesseiro e pega no sono, que ama cochilos, que ensinou o filho a dormir igualmente profundo ao longo de pelo menos 8h desde muito novinho, que adora lençóis, fronhas, travesseiros fofinhos, PIJAMAS, alguém que se precisa ir ao banheiro no meio da noite (fato raro) percorre o corredor no escuro para não correr nenhum risco de despertar completamente, ou que espera o dia amanhecer para resolver a questão e nem por isso perde o bom humor ao abrir os olhos por volta das 9h da manhã (horário que salvo ter algum compromisso, é quando meu relógio biológico toca sem rancor);

·       Ter aprendido a amar café, puro e sem açúcar, depois de quase 30 anos bebendo apenas chás, reconhecer a magnitude do cheirinho de um bom café sendo passado na hora e o sabor inigualável de uma xícara oferecida sem motivo aparente, tomar café com quem amamos, no meio daquele texto difícil e/ou importante, te chamando para a companhia agradável seguida de um papo ameno (quase furado) que dura até o último gole, começar a ter o tipo preferido, dar uma máquina de expresso para o marido de presente de aniversário querendo agradá-lo (e de quebra ser amplamente beneficiada);

·      Parir de parto normal, ter sentido aquela dor absurda que hoje, seis anos depois, praticamente não lembro mais, mas sinto calafrios de todo modo,  conhecer o que é a tal dor boa, muito melhor que da agulha da tatuagem, ter aguentado firme, ter sido amparada, ouvir o choro de alguém que saiu de você quando e como quis, servir de morada, dar à luz, criar um ser humano melhor para o mundo, quase morrer de exaustão e de amor na mesma medida, não saber mais como seria viver sem um filho, jamais se arrepender, de vez em quando simplesmente enlouquecer, querer sumir, se realmente sumisse, voltar três quadras depois da fuga de tanta saudade do motivo que me fez sair correndo, desejar que a infância dele passe lentamente, diminuindo o ritmo da casa para isso, ao mesmo tempo, querer que ele cresça forte, seguro e acolhido para enfrentar a tudo e a todos se necessário;

·      Ter equilíbrio em algo que considero um trunfo: ser responsável, ética, pontual e totalmente dedicada a todo e qualquer projeto que me envolvo, seja pessoal ou profissional, nunca deixar na mão, cumprir prazos, produzir com extrema dedicação e uma boa dose de perfeccionismo, amar o jornalismo, apesar de detestar o mercado de trabalho, e sempre terminar de escrever com o coração preenchido de amor por ter feito, mais uma vez, algo que provavelmente nasci para fazer, estudar, pesquisar, aprofundar… Por outro lado, achar que o ócio é vital, conseguir ficar sem fazer nada por horas a fio e não me crucificar (nem sempre), adorar deitar com as pernas pra cima e assistir uma novela antiga – e pela segunda vez, ficar sozinha em meio aos meus programas de moda, culinária ou entrevistas, lendo, pensando em calma ou elaborando tormentas, levantar disposta a fazer algo e ir fazer, ou desistir assim que propõe, achar um desperdício ficar em casa num dia lindo de sol e céu azul, ficar em casa num dia lindo de sol e céu azul e achar maravilhoso, não sair de casa numa quarentena e estar cansada de tanta rebeldia, não de ficar em casa;

·      O focinho molhado e gelado da minha cachorrinha, Lua, meu pequeno chamando “mamãe” antes de levantar da cama e seus olhinhos brilhando em charme e manha quando apareço na porta do quarto, os beijos apaixonados do meu marido (sim, sempre), especialmente aqueles que ele me dá na nuca quando eu menos espero enquanto estou concentrada fazendo alguma coisa, por falar em marido, eu e ele, dois corpos que não gostam de dormir grudados a noite inteira, mas pés que se acham a todo custo, cozinhar tomando uma taça de vinho ou uma cervejinha gelada, muitas cervejinhas geladas depois do almoço no sábado à tarde, preparar o café da manhã, o almoço e o jantar e receber elogios e mais elogios mesmo que seja só o cardápio repetido, acordar e ter um saco de minicoxinhas fresquinhas na mesa, trocar qualquer restaurante chique por churrasco (juro) ou a macarronada da minha mãe;

·      Passar o dia inteirinho na beira da praia, beliscando e esperando o tempo simplesmente passar, não saber nadar, mas amar ficar parada na piscina e achar o máximo, sentir o cheirinho da chuva e da terra molhada, começar a faxina batendo o cotovelo na mesa, levando um baita choque e resolvendo deixar tudo pra amanhã; ou quebrar o dedo mindinho passando aspirador de pó e jurar nunca mais endoidar, se arrepender ao ver o chão sujo e começar a limpar freneticamente, tirar férias de 24h no dia seguinte se achando a rainha da limpeza e administração, falar com a minha mãe ao telefone, na janela, pessoalmente, em todo e qualquer lugar, desejar que ela fosse eterna, ter conhecido pessoas que eu não gostei à primeira vista sendo que a pessoa me adorou logo de cara, me deixar surpreender com as pessoas, mesmo que custe caro muitas vezes, considerar uma vitória ter os boletos do mês pagos, mesmo que não sobre pra uma grande viagem ou investimento, assistir filmes infantis e amar, chorar e querer ver de novo, amar a capacidade que o cinema e as artes em geral tem de nos fazer refletir, questionar e andar nas nuvens, nunca ter ouvido tanto música nova e boa como nesta fase, escutar Emicida como uma oração, entender que político é para ser cobrado e fiscalizado e professor sim, elogiado e exaltado;

·      Ter cuidados com a beleza, mas estar há quase um ano sem cortar o cabelo e fazer as unhas no salão, ter rotina de skincare, ter dias que nem penteia o cabelo, cheiro de roupa lavada, a mãe te trazer o almoço, terminar uma série, começar uma série, abrir a caixa de fotos e chorar copiosamente, tirar tudo do armário pra fazer uma limpa e arrumação e quase cair dura de preguiça pra arrumar depois, amar enfeitar a casa pro Natal, nunca ter gostado de aglomeração (até quando podia), ter uma alimentação saudável, mas colocar catchup em tudo se puder, tirar repetidas fotos do filho e da cachorrinha, ter dó de apagar qualquer coisa e o smartphone viver com aquela mensagem de estar cheio, querer uma casa com quintal, ter mais filhos, mais cachorros, e um pouquinho mais de dinheiro, vai, ficar casada com o homem da minha vida pra sempre, não resistir ao cheirinho do cangote, mesmo que azedinho, da minha cria – assim como ao seu chulezinho, amar o som do mar, de passarinhos, gargalhadas, dar e receber um colinho, apreciar o silêncio desde que eu mesma possa colocar fim nele, me colocar em primeiro lugar; respeitar o tempo, o espaço e a vontade dos outros, odiar odiar, mas odiar racistas, homofóbicos, misóginos, xenofóbicos, querer que a vida seja mais leve não apenas para mim, me preocupar, me despreocupar, transgredir e pensar ou pensar e transgredir…

Nunca acaba.

Até a próxima!

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