Foi Preciso Sangrar

Algumas marcas são profundas e eternas, porém nem todo mundo precisa sofrer as mesmas mazelas se as pessoas definitivamente olharem para o próximo com delicadeza e generosidade  

 

Para ler ouvindo: Debaixo D’água – Arnaldo Antunes

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Apesar da pandemia, da quarentena interminável (sim, eu e minha família seguimos em distanciamento social rígido) e das perspectivas pouco animadoras em se tratando de vários outros assuntos, tais como política e futuro do país, eu estou bem. Apesar de tudo, na última semana me peguei pensando se deveria ou não publicar aqui um desabafo em tom de protesto que escrevi em 2017. Enfim, cá estou eu contando que na próxima segunda, dia 16/11, completam três anos desde que perdi meu segundo filho ainda no ventre. Resolvi compartilhar com o mundo um fragmento da dor que, na época, externei em palavras para não explodir e hoje trago aqui a esperança de que outras mulheres sejam mais bem acolhidas e amparadas num momento em que se abre um abismo sob nossos pés.

Hoje em dia, muito se discute sobre qual seria o exato começo da vida… para mim, é desde que ouvi o pulsar do seu coração.

 “Sangrando escrevo estas palavras. Literal. O útero se encaixa no lugar e sangra. Provavelmente mais rápido do que consigo superar emocionalmente.

 Eu sofri um aborto espontâneo. Não houve descolamento. O coração parou de bater.

 Desde antes do meu primeiro filho nascer eu defendia os direitos da mulher ao parir. Depois do nascimento do Pedro – num parto normal absurdamente rápido, intenso e maravilhoso – mergulhei de cabeça no incrível universo da maternidade e descobri os avanços que muitas mulheres, mães, doulas, obstetras e profissionais da saúde engajados haviam conquistado. Para que tenhamos acesso ao que é nosso por direito: dar à luz com segurança, dignidade e total respeito às nossas escolhas (sejam elas quais forem).

 Nunca pensei que hoje estaria levantando outra bandeira, a qual infelizmente precisei sentir na pele para ver o outro lado, tão ou mais vulnerável que o do parto: a dor de perder um filho ainda no ventre.

 ******

 Algumas mulheres chegavam impecáveis e felizes para a cesárea agendada; enquanto outras viviam o trabalho de parto ali há horas. Visitas entravam e saíam animadas. Pais eram preparados para entrar no centro cirúrgico, acompanhar o momento mais importante da vida de um casal que sonha em ter filhos: o nascimento.

 Precisei aguardar porque o plano de saúde demorou a liberar a curetagem pós-abortamento. Alegavam que o carimbo do médico no laudo estava fraco. Enquanto isso, eu sangrava na sala de espera de uma maternidade bem no centro de Curitiba, a mesma na qual eu tinha ido um dia antes já sangrando e por ser feriado não pude fazer ecografia. A mesma que a enfermeira disse que passaria “a gestante” na minha frente quando pedi que aguardasse um segundo meu marido voltar do banheiro para ficar com nosso filho (na época, com 3 aninhos). Aquela que contrata uma enfermeira capaz de deduzir que eu não estaria grávida por ainda não ter barrigão – ou, no mínimo, vidente para prever que meu bebê poderia não ter batimentos. EU JÁ SANGRAVA o aborto espontâneo latente que numa conversa com o obstetra plantonista (que nem exame de toque fez) considerou absolutamente improvável.

 Voltei para casa, sangrando confiante.

 ******

 Segui para o centro cirúrgico e meu marido não pôde ir comigo. Não tem (ou pelo menos não tinha) LEI DO ACOMPANHANTE quando se está perdendo um bebê. Enquanto isso, o sangue aumentava junto com a dor. “Espere aqui”, disseram. Tomei os medicamentos para o procedimento: era preciso sangrar ainda mais.

 No centro obstétrico, o som dos pais sendo orientados; as rodinhas das macas onde as gestantes eram levadas; gemidos; trabalhos de parto ativos; corre-corre, está nascendo.

 Você precisa sangrar mais.

 Apesar de saber que estaria bem cuidado, meu filho não saía um minuto sequer da minha cabeça. Não tinha meio algum de ter notícias dele, estava ali completamente sozinha e incomunicável.

 Quatro horas. A mesma dor do trabalho de parto que eu havia vivido há exatos 3a9m antes. Menos intensidade. Zero alegria. Diferentemente da outra vez, o corpo, o cérebro, todas as células trabalhando contrariadas. Forçadas. Você precisa sangrar mais.

 Dor. Trauma. Solidão.

 Muita espera.

 Preciso sangrar, penso o tempo todo. Meu marido na recepção. A enfermeira que pergunta, antes de ver meu prontuário, o motivo do choro. A outra que vai levantando a coberta sem pedir licença, enfia a mão entre minhas pernas e simplesmente diz: você precisa sangrar mais!

 Não há biombos, cortinas, nada. Apenas a “rotina da curetagem” em mais um dia típico de trabalho, muita demanda, pouco pessoal.

 E eu, que nunca havia perdido um bebê antes.

 Chegam outras mulheres, vão colocar o DIU. “Está em trabalho de parto?”, perguntam. Não, eu só preciso sangrar. Mais choro. Uma delas vem e segura minha mão. A instrumentadora de um médico passa, me ouve e oferece mais apoio. Nunca mais esquecerei aqueles rostos, até então completamente desconhecidos, que me ofereceram colo no momento mais difícil da minha vida. Meu marido não podia subir, apenas os maridos/acompanhantes de quem estava dando à luz, repito para que ninguém esqueça. Eu jamais esquecerei.

Enfim, sangro o suficiente. Anestesia geral. Meu bebê de 8 semanas é retirado. Vou para sala de recuperação onde uma mãe, aflita por não ver sua filha há algum tempo, pergunta: também fez cesárea?

 Silêncio.

 ******

 Sigo meu caminho sem um pedaço de mim. Sangrando. Literal. O emocional Deus há de cuidar, mas é preciso falar sobre perder um bebê. Pensei em sangrar silenciosamente, mas espero que este relato chegue um dia a cada mulher que já pariu; que já perdeu um filho na gestação; a qualquer um que seja solidário, que preze pela empatia.

 Precisamos humanizar os humanos que trabalham na área da saúde. Precisamos humanizar as administrações dos hospitais e maternidades. Precisamos apoiar e respeitar a mulher que dá à luz.

 Precisamos falar sobre aborto, sobre curetagem. Precisamos falar sobre humanizar. Mas, principalmente, precisamos e devemos unir tudo isso.

 Não soltem nossas mãos se perdermos um bebê, suplico.”

Até a próxima!

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