Pandemia, Saúde Mental e Organização

Desde janeiro, os psicólogos dividem a pandemia da doença COVID-19 em ondas. Uma delas é dedicada exclusivamente aos impactos na saúde mental das pessoas. A ameaça à nossa vida e a de quem amamos, demissões, distanciamento social, perda de privacidade, processos de luto concretos e intangíveis e exaustão são algumas das dores que serão processadas por quem atravessa esse momento.

Situações como estas são consideradas limite e podem levar algumas pessoas a revisitarem essas dores novamente quando a pandemia já tiver passado. Esse processo é conhecido como Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) – distúrbio da ansiedade caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais em decorrência de testemunhar situações traumáticas que, em geral, representaram ameaça à sua vida ou à vida de terceiros.

 

Os sintomas podem variar e surgir meses e até anos depois do fim da situação traumática. Pensamentos intrusivos, pesadelos, comportamentos de repetição e alteração no sistema de alerta são alguns deles. No caso da COVID-19, a especialista em Psicanálise e consultora de organização Carolina Ferraz explica que os efeitos da pandemia na saúde mental vão mudando conforme as ondas da doença: “No primeiro momento, a maior dificuldade foi em relação ao enfrentamento de uma doença desconhecida e à adaptação às novas condições: nosso sistema de sobrevivência ficou mais sensível para que pudéssemos estar atentos e evitar a contaminação, nosso senso de urgência e estresse ficou elevado diante do medo do desabastecimento dos suprimentos básicos, a corrida pelas máscaras e álcool que esgotavam-se rapidamente nas primeiras semanas de março, por exemplo”, comenta.

Duas semanas depois do aparecimento das notícias da COVID-19 no Brasil, enfrentamos o isolamento social e o distanciamento de quem amamos, ao mesmo tempo em que lidávamos com as rotinas de trabalho exaustivas, já que as empresas ainda estavam criando rotinas de horário e processos no Home Office, além da falta de privacidade.  Quem precisava trabalhar em uma das linhas de frente da saúde, teve os processos de sobrevivência ainda mais em alerta, além de precisar lidar com o medo de contaminar-se ou contaminar sua família. Alguns profissionais da área da saúde com familiares do grupo de risco em casa também optaram por se isolar em moradias específicas, lidando também com a solidão, em um dos momentos mais críticos de suas carreiras. Não podemos esquecer da instabilidade econômica gerada pela pandemia e, mais uma vez, a ameaça à sobrevivência: dessa vez ligada à falta de dinheiro para o básico.

Entre abril e junho, experimentamos o aumento exponencial no número de casos e a doença foi chegando cada vez mais próxima de nós. O processo de luto antecipatório por quem se ama para muita gente transformou-se em perdas reais, conforme o número de mortes avançavam no País. O Brasil ainda passou por um processo singular de encarar a pandemia por conta da falta de unidade como sociedade e mensagens díspares das autoridades políticas. Antes, nos imaginávamos passando pela pandemia em meio a correntes solidárias, mas o que vimos foi um embate cada vez maior com o outro, gerando um processo de negação mais longo.

Hoje, estamos em fase de desaceleração, mas todas essas fases correspondem a fatores de risco para o desenvolvimento de dificuldades ligadas à nossa saúde mental. A escassez e privação da primeira fase pode ser sentida por muitos anos em um rebote, por meio do acúmulo de objetos e compras compulsivas. A solidão, a falta de unidade e a sensação de sonho interrompido são elementos que contribuem para o surgimento da depressão. O impedimento de rituais de despedida junto da categorização dessas pessoas como “números” aumentará os casos de luto crônico. O medo da contaminação e a necessidade de evitar situações de aglomeração podem desencadear casos de síndrome do pânico. A ligação entre a necessidade de protocolos intenso de higienização dos nossos corpos e objetos, ao desenvolvimento de uma doença que pode levar a morte é ponto sensível para o surgimento de rituais de repetição, como o TOC (Transtorno obsessivo compulsivo). Já o convívio intenso com a família, a falta de privacidade e as jornadas de trabalho sem freio aumentarão os casos de Burnout, por exemplo.

“Desde fevereiro, estamos nos preparando como profissionais para o enfrentamento dessa pandemia. Sabíamos que uma das ondas da COVID-19 seria em relação à saúde mental, com o desafio extra de que as dores enfrentadas são múltiplas e cumulativas. Antes, se falava que a quarta onda da COVID-19 (ligada à saúde mental), seria vista pós-pandemia, mas na verdade, a doença está bastante longa, então teremos que enfrentar esses desafios enquanto passamos pela doença. A quarta onda já começou” ressalta Carolina.

Por isso, é preciso ficar atento aos sintomas: pesadelos recorrentes, falta de vontade de levantar da cama por dias seguidos, perda da capacidade de almejar objetivos e sonhar/planejar o futuro, compras demasiadas em quantidades desnecessárias, estocagem de alimentos, sensação de paralisia e medo (que pode inclusive, ser sentido fisicamente com o coração acelerado, boca seca e sudorese) diante da necessidade de sair de casa, rituais repetitivos de limpeza mesmo quando estamos dentro das nossas casas, associados a sentimentos de condição como “se eu não fizer isso, algum desastre acontecerá” podem ser sinais para procurar ajuda de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras.

“Quanto antes buscamos apoio, menor o risco de enfrentarmos um processo de TEPT lá na frente. O objetivo é elaborar e lidar com nossas dores agora para que elas não voltem no futuro e nos faça reviver esses tempos tão difíceis.”

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