Capacitismo, café com leite e outros desafios que venci para além da deficiência

Aprendi a lidar com muitos nãos em minha vida – e a não permitir que eles definissem a minha história ou trajetória. Gostaria de compartilhar um pouco da minha adolescência, fase em que todos nós começamos a delinear os sonhos, os valores, as prioridades. Enfim, uma época que elegemos como vamos interagir com as pessoas e operar no mundo.

Acredito que a forma como vivenciei minha infância contribuiu, em grande medida, para que eu me tornasse quem sou. Falo da minha participação em brincadeiras com as outras crianças, quase sempre sem deficiências. Meus pais permitiram que eu tivesse uma infância bem ativa, participando, por exemplo, de jogos de esconde-esconde com as outras crianças. Detalhe: a brincadeira acontecia na rua, de forma que os esconderijos requeriam correr muito, pular muros, rastejar em terrenos cheios de mato. Claro que para fazer tudo isso eu precisava me unir a alguma outra criança que estivesse disposta a formar uma equipe comigo. Mas, a primeira barreira – que se tornou um aprendizado pra vida – era convencer os participantes de que eu não aceitaria ser tratada como “café com leite”.

Era apenas uma brincadeira entre crianças, mas foi uma grande lição sobre como eu sempre precisaria, com argumentos e atitudes, conquistar o direito de ter as mesmas oportunidades – e não aceitar menos do que eu considerava merecer. Meu “lugar ao sol” nunca foi ofertado de maneira natural; eu sempre tive de lutar para ocupá-lo. Ao longo de toda a minha vida, perdi a conta de quantas vezes tive de requerer o direito de não ser vista ou tratada como “café com leite”. Foi assim, por exemplo, quando fui fazer o vestibular. Ah… vale lembrar que esse termo classifica as pessoas com menor capacidade ou habilidade de lidar com situações diversas – das mais simples às mais complexas. Ser café com leite é ser menos capacitado.

Muita gente achava que era até pretensão da minha parte, sendo uma menina cega, querer cursar Direito na São Francisco. Lembro-me de uma pesquisa que fizeram no cursinho para saber quais eram nossas três primeiras opções de faculdade. Eu, em minha determinação adolescente, respondi São Francisco/Universidade de São Paulo (USP) nas três opções. Se fossem cinco ou 10, a resposta seria a mesma! Na hora do intervalo, um professor veio conversar comigo para tentar me alertar sobre o que ele acreditava ser a realidade; queria passar a visão de mundo – me perdoem o trocadilho infame – para a garota cega que não tinha consciência das próprias limitações.

Ele apontou todas as dificuldades “normais” de um vestibular para Direito na USP; claro, acrescentou, com bastante destaque, uma série de desafios adicionais que eu teria de superar para ingressar no tão sonhado Largo de São Francisco. Sei que a intenção dele era boa e – na crença capacitista dele –, era necessário que alguém tivesse a coragem de me dizer o que todos estavam enxergando e eu, classificada como ingênua, não conseguia perceber. No entanto, eu estava muito determinada a realizar meu sonho e, agradecendo, ouvi e deixei de lado o conselho oferecido.

Na época eu não sabia, mas já estava combatendo o capacitismo; já estava me rebelando contra a crença de que eu era “café com leite”. Você já ouviu falar de capacitismo? Trata-se de um termo relativamente novo que define a discriminação contra pessoas com deficiência por presumir que somos incapazes de realizar atividades e, principalmente, de avaliar situações e encontrar soluções. Infelizmente, os episódios em que tentam me tratar como “café com leite” são inúmeros em minha vida – e continuam se repetindo até hoje. Seja pelo capacitismo ou pelo machismo, até hoje me deparo com situações em que as pessoas me consideram menos capaz – na hora de avaliar pessoas, definir estratégias ou executar ações impactantes. É bastante curioso, porque elas se admiram com minha história e realizações, mas continuam acreditando que não tenho discernimento para lidar com situações mais complexas.

Lembro-me que, quando decidi atuar para aprovar a legislação que autoriza o livre acesso de pessoas com cães-guia, conversando com uma pessoa que tinha ampla experiência na política, veio aquela famosa risadinha do tipo “tadinha não sabe como as coisas funcionam”, quando eu disse que iria tentar aprovar a lei em um ano. “Não é assim que as coisas funcionam na política!”. Eis, aqui, o famoso tratamento “café com leite”. Como sempre, agradeci o conselho e segui firme no meu propósito. E se essa pessoa estava certa em algo foi sobre o tempo para aprovar. Não foi um ano, consegui essa aprovação em pouco menos de 12 meses.

O mesmo se deu quando trabalhei para alterar – dentro do Ministério Público Federal – um impedimento para que pessoas com deficiência pudessem fazer as provas para o cargo de Procurador da República, utilizando computador. Em outra ocasião, trabalhei firmemente para que as maquininhas de cartão de crédito tivessem uma solução de acessibilidade. Foi assim em tantas outras situações…

Em uma reflexão rápida, acredito que consiga esses resultados porque – além de utilizar meus conhecimentos jurídicos e de funcionamento do Estado e da sociedade – porque vislumbro sempre a possibilidade de se alcançar resultados relevantes ao se promover a conexão real entre pessoas e ideias diferentes. Ouvir pessoas e experiências diversas, misturar tudo para criar uma solução inovadora e eficaz, é algo que adoro fazer. É algo que pratiquei ao longo de toda minha vida – e colhi resultados muito gratificantes.

Posso afirmar que mesmo as pessoas com comportamentos capacitistas – pela falta de conhecimento e vivência – têm espaço nos meus projetos; aprendi a acolher todos, porque acredito as pessoas têm a contribuir na construção da diversidade. Defendo que o capacitismo, o machismo, o racismo e todas as variações de preconceitos danificam o tecido social como um todo; são problemas cujas soluções estão na união de todos. A sociedade – com toda a sua vibrante diversidade – só vai estar em outro patamar civilizatório com a união.

| Thays Martinez

Nascida em São Paulo, em janeiro de 1974, Thays Martinez é formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). A advogada, palestrante e empreendedora social possui especialização em Direito Penal e em Interesses Transindividuais; e MBA em Marketing de Serviços. Deficiente visual desde os quatro anos, Thays foi conselheira do Conselho Nacional de Assistência Social e membro da comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB. Voluntária de Relações Institucionais do Instituto Magnus, a advogada é consultora e ministra palestras em empresas (públicas e privadas) e em estabelecimentos de ensino, abordando temas como motivação, mudança, inovação e superação; Direito; acessibilidade; e inclusão social. É autora do livro “Minha vida com Boris – A comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil (Globo Livros)” e idealizadora do projeto “Heróis à Vista”.

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