Cartas para Lígia – Um ano de saudades
Um ano…
Era uma manhã de uma sexta-feira fria… Dia 26 de julho.
Costumeiramente, era às sextas-feiras, à noite, que o nosso encontro acontecia, mesmo que o cenário fosse uma fria UTI de um hospital, era ali que eu celebrava a nossa amizade, o nosso amor e o nosso encontro… Éramos eu e você, ainda que um coma nos separasse.
Enquanto agradava a sua cabecinha e o seu braço, seu rosto, no seu ouvido eu falava sobre a gente. Lembrava dos dias com você e dizia: Ah, prima, hoje o Facebook me trouxe essa lembrança, da gente no Santuário de Schoenstatt. Por favor, volte logo porque precisamos voltar lá!
E, mesmo com você dormindo, te mostrava pelo celular fotos da nossa casa nova e dos lugares que eu e o Ulisses havíamos ido… Era a meia hora mais esperada da semana, a hora de te ver, contar das incontáveis pessoas que oravam por você, mesmo sem te conhecer…
Mas, aquela sexta-feira, seria diferente…
O telefone tocara às 7h30 da manhã, e eu pensei: Oba! Acho que a Ligiane está me telefonando pra dizer que hoje a visita é mais cedo e eu terei mais tempo com a Lígia.
Do outro lado, a voz não era a da Ligiane, mas sim da Gabi, namorada do Murilo (seu filho). Em poucas palavras, ela me disse que a sua luta havia chegado ao fim. Não teria encontro nessa sexta-feira e em nenhuma outra… Você havia voltado para a casa.
Um filme passou na minha cabeça… Nossos encontros, nossas risadas… Meu Deus, por que você? Por que a gente? Por quê? Perguntas sem resposta, silêncio doloroso, um hiato eterno… Vi o chão se abrir. Era um misto de revolta e alívio, na certeza de que você não sofria mais, porque você não merecia passar por isso, mas o meu egoísmo preferia ter você aqui, ainda que sofrendo as vicissitudes desta vida. Aqui era o seu lugar, conosco, onde ainda é, onde ainda está, onde permanece e permanecerá para sempre, pois, enquanto eu viver, vou me lembrar de você…
No dia anterior, 25, eu havia ido ao Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cheguei no final da missa, passamos lá por acaso e, coincidentemente, era missa da saúde, e o padre pediu que a gente mostrasse a foto da pessoa por quem a gente estava ali pedindo saúde. Achei uma feliz coincidência, corri pegar uma de suas fotos e apresentei ao sacerdote, que lançou água benta sobre ela. Pensei: mais um sinal da cura, que está chegando! Ali mesmo, adquiri a imagem de Nossa Senhora da Saúde. Conversei muito com ela e disse que ela ficaria com você no hospital e que eu só a teria de volta quando você voltasse para casa. Mas não deu tempo de te entregar… Assim como não deu tempo de a Ligiane entregar para você a fitinha que eu peguei lá em Aparecida/SP e entreguei para ela ainda no hospital.
Lembro que em março de 2019, eu e o Ulisses fizemos uma linda viagem, em que eu conheci o Santuário de Aparecida e me apaixonei por Canção Nova, ali em Cachoeira Paulista, e descobri um lugar no mundo que eu chamaria de meu: Conservatória/RJ. Lá na casinha, local em que você ficou guardada e que vendemos em maio de 2019, você viu todas essas fotos e, maravilhada, disse: “Janinha, eu quero muito ir conhecer esses lugares todos. Vamos no fim do ano? Pode ser no meu carro!”
Assentimos! Já estava programada uma nova viagem, tínhamos até o roteiro em mente. E nesse instante você disse: “Ah, eu também quero ir para a Lapa/PR! Vocês sempre vão para a Lapa e nunca me levam”. Não tinha como adivinhar, prima…
O puxão de orelhas foi entendido e aceito. Nos programaríamos e, assim que a sua saúde melhorasse, a gente iria…
Tinha ainda o Templo de Curitiba, um lugar lindo e acolhedor, que prometi levar você lá, mas choveu no dia…
Não tem problema, depois da sua partida, em setembro de 2019, deixei você lá, junto com a Ligiane, pois havia sonhado com você e era lá que você aparecia para mim, em um lindo sonho, em que dizia que tudo estava bem, pedia para que eu pedisse a Deus para te curar e ao se despedir, você se transformava em um lindo ponto de luz.
Quando você se submeteu ao procedimento, fiz praticamente uma via-sacra. Fui a União da Vitória, no Morro do Cristo, fui a Irati, na imagem de Nossa Senhora das Graças e mandei pra você, por WhatsApp, a foto da imagem de Santa Bárbara, lá em Bituruna/PR (a maior santa colorida do Brasil), e disse que, em cada um dos lugares que estive, fui pedindo por você e pela sua saúde. Eu tinha certeza de que você voltaria para nós.
Mas, aprendemos, todos, da pior maneira… Que nem sempre, mesmo que façamos tudo o que está a nosso alcance, aqueles que amamos precisam partir, e não há nada que possamos fazer para evitar essa despedida.
Na sexta-feira anterior, dia 19, eu fui te ver, e você estava acordada da sedação. Que alegria… Você demorou a me reconhecer, mas quando ouviu a minha voz e o meu nome, uma lágrima escorreu dos seus olhos… Eu jamais vou esquecer aquela cena (lembro até a roupa que eu estava usando), um sinal da nossa cumplicidade eterna.
Comecei a contar tudo pra você, tagarelando como sempre… Arranquei sorrisos e aquilo me alegrou a alma! Aquele, certamente, era o box de UTI mais animado. Ali eu tive a certeza de que você voltaria para nós, no entanto, mal sabia eu que aquele era nosso último encontro, e que a nossa próxima sexta-feira seria marcada pela despedida… Ah, Lígia…
No dia em que todos fomos dar adeus ao corpo que você havia deixado, um mural lindo de fotos foi feito, e em todas elas, você estava como sempre foi: esplendorosamente linda, feliz, radiante. Porque não há uma só pessoa no mundo que não se recorde de você pela sua energia, pela sua alegria, pela sua vontade de viver. Não tinha “tempo ruim” com você! Ou era pra já, ou agora! Sempre disposta, sempre disponível. Histórias foram contadas sobre você, amigos se reuniram em choro e sorrisos, porque a sua lembrança confortava… Reconheci e conheci pessoas de quem você falava e fui reconhecida. Isso atestou aquilo que eu já sabia: você me amava, muito! Obrigada, Senhor!
Não consegui ir ao seu sepultamento no dia seguinte. O corpo me doía tanto, não tive forças para me levantar da cama…
Naquela noite, partimos em direção a Bituruna… Passamos por União da Vitória, e mesmo tarde, subimos o morro do Cristo… Agradeci a sua vida e o fato de você ter passado pela minha vida e ter voltado anos depois… Saindo dali, vimos o céu mais estrelado que eu jamais imaginei ver. Tive certeza de que foi você que enviou aquele céu pra gente, pra dizer que estava tudo bem com você. Indescritível. A poeira de estrelas, a quantidade de estrelas, o rastro que elas faziam… Indescritível. Apagamos as luzes e estacionamos na beira da estrada. Agradeci novamente…
Saindo dali, chegamos a Bituruna, e lá estava a Santa Bárbara. Linda, imensa… Eu olhei para ela e disse: Meu Deus, como você é linda! Ao lado direito da imagem, uma estrela brilhava forte demais e percebi que ela nos acompanhava desde que vimos o céu estrelado em União da Vitória. A ela dei o nome de Lígia, e não raro, olho o céu e lá está ela… Lá está você…
Às vezes me pego pensando em você e digo: Viu, sua sacaninha… era pra você estar aqui, mas não…
Ou então: Quem mandou a Lígia ter pressa? Quis ir embora! Que sacanagem…
No réveillon de 2018 para 2019, eu te liguei… era 0h12… Quando você atendeu, algo muito forte me tocou e eu comecei a chorar sem parar… Eu te pedi: prima, por favor, não vá embora! Não vai ser fácil, sabemos, mas você precisa ficar com a gente.
Você começou a chorar e me disse: Janinha, por que você está me dizendo isso?
Eu não sabia o motivo, jamais imaginaria que sete meses depois você partiria, dando sentido a esse telefonema e ao choro que choramos juntas.
Desde a confirmação do seu diagnóstico, minhas orações intensificaram e eu conheci o tamanho da minha fé. Chegamos a ser 14 mil pessoas orando por você. Nada foi em vão.
Dias depois da sua partida, veio o pedido da Ligiane: ela queria, a pedido do seu pai, que o Ulisses fizesse o santinho da sua missa de sétimo dia. Foi o trabalho que ele não gostou de fazer, afinal, ele sempre soube da importância que você tinha e tem na minha vida e na nossa história…
Doloroso demais para todos nós…
Em dezembro de 2019, cinco meses depois, resolvemos voltar aos lugares que eu prometi te levar…
Primeiro, deixei você no Santuário de Aparecida, na sala das promessas. Quando cheguei ao balcão, mal conseguia falar… Só entreguei a sua foto para a pessoa que recebe os objetos e pedi que cuidasse bem de você. Que eu havia prometido levar você até lá, mas não deu tempo, e aquela era a minha maneira de cumprir a promessa. A pessoa quis me consolar, mas eu não consigo lembrar do que ela me disse. Aquela sala faz até o mais duro dos homens se emocionar.
Saindo dali, no dia seguinte, seguimos para Conservatória/RJ. Ao reencontrar a querida Valéria, amiga que fiz lá, contei a ela sobre você, sobre os nossos planos de viagem e sobre a vontade de levar você no Bistrô do Poeta, local que é parada obrigatória e que faz a gente voltar praquela linda cidadezinha. Com os olhos marejados, a Valéria me pediu que deixasse sua foto lá também, que já que eu havia prometido te levar pra lá, ela gostaria de ficar com o seu santinho, feito pelo Dado, namorado da Luiza (sua filha). E lá você ficou. Posamos para uma foto, que ficou com a Valéria e segue em exposição no caixa do estabelecimento, e lá está o seu santinho, nas mãos dela.
Você também ficou na igrejinha de Conservatória e, se o vento não levou você, você está com vista privilegiada para a Serra da Beleza – uma serra localizada entre Santa Isabel do Rio Preto e Conservatória, ambos distritos da cidade de Valença, no interior do Rio de Janeiro.
Você também ficou em Canção Nova… Lá em Cachoeira Paulista. Quando chegamos à cidadezinha, conseguimos pegar a missa a tempo… E eu chorei a missa todinha pensando em você. Deixei você ali em Pietá, e quem entrar no santuário, de longe, avista você.
Essa semana, deixei você em Irati. Ficou faltando a Lapa e Bituruna, além de União da Vitória. Mas em breve, você ficará lá, afinal, promessa é promessa.
Guardo de você as mais doces lembranças, e às vezes, nem parece que você foi embora… Lembro das manias, das risadas, do pedido do café do Ulisses: “será que ele faz mais um pouquinho pra mim”?, “Vou colocar o anel aqui, no indicador, pra lembrar de te avisar quando chegar em casa”, “vamos pra praia semana que vem, Janinha? Mas é pra pousar”…
Nunca mais as risadas de doer a barriga, a sua risada, de espremer os olhos e lacrimejar, ficar quase sem ar… Nunca mais a minha prima que devolvia para dentro do pastel a carne que caía dele, no prato… Nunca mais a Lígia, a Pimentinha. Não me lembro de nunca mais ter dito pra alguém: vou te esmagar, como dizia pra você! Pra sempre a Lígia, amada, de quem eu me pego lembrando e não raras vezes, choro, mas na maioria, eu dou risada sozinha…
Depois da sua partida, nunca mais olhei o céu do mesmo jeito. E a cada por do Sol, daqueles que você amava e agradecia, espio ali da janela, fotografo e lembro de você. Por dias, depois da sua partida, segui enviando fotos do céu para você via WhatsApp… Às vezes ainda marco você no Facebook ou envio um WhatsApp… Você vive em mim…
Às vezes, você me visita em sonho, sempre positiva… Às vezes, quando me deito, corro dar uma olhada no seu Facebook ou Instagram e peço para sonhar com você… Nunca funciona, você aparece quando quer! rsrs
Tanta coisa aconteceu depois que você se foi… Nos mudamos duas vezes, e você não teve tempo de conhecer nossas casas… Fiz as minhas cirurgias reparadoras, estamos passando por uma pandemia… Mas, como diz aquela música “aí eu lembro de você, e essa lembrança me agiganta”…
Seguimos daqui, minha prima, vivendo a vida… Porque não há outro remédio. Dizem, inclusive, que o tempo é o melhor remédio, mas eu questiono por que ele tem que ser tão amargo…
Espero que você esteja bem…
Um ano passou… Um ano que você foi tirada do nosso convívio, mas que a sua lembrança segue comigo, e com certeza, com quem te conheceu…
E eu continuo por aqui, tentando enganar a saudade, quando ela pergunta por você…
– Lígia Romani partiu no dia 26 de julho de 2019, aos 53 anos, vítima de amiloidose.