Metanol no Brasil: a subnotificação que esconde uma tragédia silenciosa

O verdadeiro impacto das intoxicações por metanol é muito maior do que os números oficiais indicam, exigindo uma resposta urgente e transparente da sociedade e das autoridades.

O Brasil vive um novo capítulo de uma tragédia antiga. Casos de intoxicação por metanol em bebidas adulteradas voltaram a se espalhar pelo país, levantando dúvidas sobre a eficiência da fiscalização, a segurança do consumidor e a dimensão real das mortes causadas por esse tipo de crime.

De acordo com o Ministério da Saúde, até o início de outubro foram 24 casos confirmados e 235 suspeitos em investigação, com cinco mortes oficiais e 11 óbitos sob análise. O Estado de São Paulo concentra a maior parte das notificações.

Mas o número real é muito mais alarmante. A maioria das vítimas de metanol morre sem diagnóstico, muitas vezes em casa, com atestados que mencionam infarto, AVC ou falência múltipla de órgãos. Estamos falando de um cenário de subnotificação crônica, que invisibiliza a dimensão dessa tragédia.

O metanol é um álcool industrial usado em combustíveis, solventes e produtos de limpeza. Ao contrário do etanol, o metanol não é seguro para consumo humano: doses pequenas, entre 30 e 100 mililitros, podem causar cegueira, danos neurológicos irreversíveis e até a morte.

O perigo está na semelhança sensorial com o álcool etílico. O sabor, o cheiro e a aparência são praticamente idênticos. Isso faz com que adulteradores substituam parte do etanol por metanol em bebidas destiladas, especialmente em lotes clandestinos de cachaça, vodca e conhaque, para reduzir custos e aumentar o lucro.

Não é acidente, é crime. O metanol não aparece por erro técnico, ele é colocado de forma intencional. Estamos lidando com uma rede criminosa que lucra com a morte de pessoas. E o mais grave é que a resposta social a esse tipo de crime ainda é tímida.

A subnotificação ocorre por três razões principais: falta de diagnóstico laboratorial, omissão de informações e baixa integração entre saúde pública e polícia científica.

Em muitos municípios, não há protocolo padronizado para coleta de amostras suspeitas de metanol, o que leva a subnotificações em larga escala.

Há mortes que jamais entram nas estatísticas porque não há autópsia, e os sintomas são confundidos com outras causas clínicas. Isso mascara a real dimensão do problema. O que aparece nos relatórios é apenas a superfície de algo muito maior.

Essa lacuna se reflete também no cenário internacional. Um levantamento do Médicos Sem Fronteiras (MSF) indica que, entre 1998 e 2025, mais de 40 mil pessoas foram intoxicadas e 14,4 mil morreram no mundo em decorrência de bebidas adulteradas com metanol.

No entanto, a própria instituição ressalta que esses dados estão longe de representar a totalidade dos casos, especialmente em países da América Latina, África e Sudeste Asiático, onde a informalidade é alta e o controle sanitário é limitado.

A crise também chegou aos caixas. Um levantamento de uma empresa que analisa notas fiscais de 33 mil estabelecimentos em São Paulo revelou que as vendas de destilados caíram 31% desde o início da crise.

Os consumidores estão com medo, e a confiança, que já vinha abalada pelo aumento das falsificações, despenca ainda mais. Essa queda representa não apenas um reflexo do pânico momentâneo, mas também um divisor de águas para o setor:

Os bares e restaurantes precisam encarar essa crise como um ponto de virada. É hora de assumir responsabilidade sobre a procedência das bebidas, exigir documentação, rastreabilidade e selos de autenticidade. Quem não fizer isso, corre o risco de perder o cliente, ou algo muito pior.

É fundamental que o comércio de bebidas alcoólicas no Brasil entre em uma nova era de transparência obrigatória, com rastreamento digital de garrafas, integração de bancos de dados fiscais e campanhas públicas de esclarecimento.

O impacto social da crise é evidente. Em grupos de redes sociais, consumidores relatam medo de frequentar bares e festas. Alguns eventos têm registrado queda de público, e comerciantes que trabalham com destilados afirmam enfrentar desconfiança crescente, mesmo em locais que seguem rigorosamente as normas sanitárias.

O temor é compreensível, mas o foco não deve ser o pânico, e sim a consciência do consumo. As pessoas estão com medo de se divertir, mas o problema não está na festa, e sim na falta de controle sobre o que chega ao copo. É preciso educação, fiscalização e responsabilidade compartilhada. O prazer de brindar não pode se transformar em um risco de morte.

A crise do metanol deve ser tratada como um divisor de águas para a sociedade brasileira. Um ponto de inflexão em que consumidores, autoridades e comerciantes precisam assumir novos papéis.

A sociedade precisa entender que segurança dos alimentos, e das bebidas, é um direito básico. O consumidor tem o direito de exigir rótulos, selos e informações claras sobre procedência. E o bar ou restaurante precisa ser parte ativa da solução, não da cadeia do risco.

A crise do metanol é mais do que uma sucessão de tragédias individuais. Ela expõe uma fragilidade estrutural do país: a falta de rastreabilidade efetiva, o subinvestimento em vigilância sanitária e a desinformação que ainda domina o consumo popular.

Enquanto isso, casos continuam surgindo, silenciosamente, nas estatísticas.

Podemos tratar o metanol como um susto passageiro, ou como o ponto de virada para um Brasil que exige segurança e transparência em tudo o que consome. Essa decisão, literalmente, está nas mãos de quem segura o próximo copo.

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Por Paula Eloize

especialista em segurança dos alimentos, fundadora do Grupo Food Smart

Artigo de opinião

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