Entre Dois Mundos: A Coragem de Ser um Corpo Amarelo na Busca por Identidade
Em “As Ruas Sem Nome”, Tieko Irii confronta silêncios familiares, racismo e diáspora para revelar a complexidade de ser nipo-brasileira nos anos 80 e 90
Em “As ruas sem nome” (Editora Patuá, 2025), a autora e artista visual paulistana Tieko Irii mergulha em uma narrativa autobiográfica que atravessa três gerações de imigrantes japoneses, tecendo um painel histórico e emocional sobre deslocamento, silenciamento e a busca por identidade. A obra, que começou com a descoberta da autobiografia secreta de seu pai, Hisashi Irii, expande-se para discutir racismo, estereótipos e as complexidades de ser uma mulher nipo-brasileira em um país marcado por hierarquias raciais e sociais.
“Quando meu pai finalmente contou sua história, entendi por que ele a manteve em segredo: era uma narrativa de tragédias, de transgressões e de coragem”, relembra Tieko. A autobiografia do pai — um jovem que fugiu de casa no Japão pós-guerra e perambulou pelo país devastado antes de emigrar para o Brasil — tornou-se o ponto de partida para a autora investigar suas próprias raízes. O livro não se limita à saga familiar. “Ao ouvir os relatos dos meus tios, descobri que era cheia de lacunas, eles pouco sabiam sobre meus avós, e assim como eu, evitavam tocar nas feridas; mas ao nos inserir na história do mundo descobri que fazemos parte de uma história coletiva. Somos frutos disso, mas também sujeitos de nossa própria história”, conclui.
Tieko cruza sua trajetória com reflexões sobre a herança cultural japonesa e brasileira, o mito do “perigo amarelo”, da “minoria modelo” e do soft power japonês, contextualizando como esses construtos sociais moldaram sua vivência. “O projeto de branqueamento brasileiro, o mito da democracia racial brasileira, composta por brancos, negros e indígenas e o racismo estrutural, nos colocou em um lugar paradoxal: nem totalmente aceitos, nem totalmente estrangeiros.”, analisa. O livro chega em um momento de crescente discussão sobre representatividade asiática no Brasil, impulsionada por pesquisadores, acadêmicos, artistas e coletivos antiracistas amarelos e asiáticos. Na obra, a autora também aborda a exotificação dos corpos amarelos e a solidão de crescer nos anos 1980, quando ser descendente de japoneses significava enfrentar bullying e invisibilidade. “Mas também é uma história de desejos, sonhos, busca de liberdade e um lugar ao sol”, enfatiza.
Para a autora, a escrita do livro foi um processo terapêutico, mas não no sentido convencional: “Não foi cura, foi confronto. Precisei revisitar memórias que eu queria esquecer, como o racismo velado, a vergonha, as transgressões, a culpa e a sensação de não pertencer.” — confessa. “Aprendi muito, tive muitos insights, chorei muito, mas o que mudou foi ampliar a minha percepção sobre mim e a minha relação com o mundo.”
A obra, estruturada em quatro partes, alterna trechos da autobiografia do pai com relatos pessoais, desde sua infância em São Paulo até sua temporada no Japão no final dos anos 1980, onde buscou, sem sucesso, um senso de pertencimento. “Ao mesmo tempo, foi um resgate étnico-identitário como um ponto de partida, mas não um fim. Percebi que somos feitos de múltiplas identidades. Não somos nem brasileiros, nem japoneses, estamos em um não lugar, que também é um lugar.” Além da escrita, Tieko desenvolveu um trabalho de colagem com arquivos familiares, unindo imagem e texto para reconstruir memórias apagadas. “Essa foi minha maneira de costurar afetos e ausências, e uma outra forma de tocar a experiência de ser nipo-brasileira”, explica.
Segundo Tieko, publicar “As ruas sem nome” é um ato político. “Durante o processo da escrita, achava a minha história banal, como que se contar a própria história fosse uma coisa menor, coisa de ‘mulherzinha’, sobretudo de uma garota nikkei fora dos padrões do que se esperava dela. Perceber que a dificuldade de validar a minha história estava relacionado ao patriarcado, ao machismo e ao racismo estrutural, que silenciou nossas vozes por séculos, nos colocou em caixinhas e nos tirou fora da universalidade, foi libertador. Compreendi que podemos contar a nossa história, a importância de passar isso adiante e o quanto isso é transformador. Muda a nossa vida.”
Por Tieko Irii
Artista visual, diretora de arte e escritora paulistana; formada em cinema pela FAAP (1988); experiência de 25 anos em publicidade e audiovisual; autora de três livros infantis; viveu no Japão entre 1989 e 1991; pesquisa sobre memória, diáspora, gênero e raça.
Artigo de opinião