CPI das Bets e o desafio do vício em apostas como questão de saúde pública
A urgência de reconhecer a ludopatia como transtorno mental e implementar políticas eficazes para proteger jovens e vulneráveis
O avanço das apostas esportivas e dos cassinos virtuais no Brasil reacendeu no Congresso Nacional uma antiga preocupação: os danos provocados pelo vício em jogos à saúde mental. Em 1º de abril de 2025, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Bets realizou uma audiência pública dedicada exclusivamente aos efeitos emocionais, sociais e financeiros das apostas online, reunindo autoridades da saúde e especialistas em comportamento para embasar propostas de regulação mais rigorosas.
Sônia Barros, diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, classificou o cenário atual como “uma epidemia silenciosa”. Segundo ela, “o vício em jogos digitais é uma condição clínica séria e multifatorial, que exige políticas públicas integradas, regulação urgente da publicidade e restrição ao acesso irrestrito das plataformas, principalmente por adolescentes e jovens de baixa renda”.
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, destacou que a ludopatia, nome técnico do transtorno do jogo, é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018 como um transtorno mental que requer tratamento especializado, assim como outras formas de dependência.
Durante a sessão, foram apresentados dados clínicos, relatos de ex-jogadores e apontadas lacunas na legislação atual. O presidente da CPI, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), defendeu medidas como a regulamentação da publicidade, a proibição de acesso a menores de idade e a garantia de atendimento gratuito via Sistema Único de Saúde (SUS). O relatório final da comissão está previsto para ser apresentado até setembro.
Danilo Suassuna, doutor em Psicologia pela PUC-GO e diretor do Instituto Suassuna, alerta que o vício em jogos compromete o funcionamento emocional e social dos indivíduos. “A ludopatia tem características semelhantes à dependência química. O jogo se transforma em um ciclo de compulsão e culpa, com impactos profundos nas esferas emocional, financeira e relacional. É fundamental que pais, escolas e serviços de saúde estejam atentos aos sinais e saibam encaminhar para o tratamento adequado”, explica o especialista.
O debate também resgatou um episódio marcante da história legislativa brasileira: a proibição dos cassinos no país, em 1946. Naquele ano, o presidente Eurico Gaspar Dutra assinou o Decreto-Lei nº 9.215, que determinou o fechamento imediato de todos os estabelecimentos de jogos de azar, incluindo o cassino do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Embora a justificativa oficial tenha sido a defesa da “moral e dos bons costumes”, registros históricos atribuem forte influência à primeira-dama Carmela Dutra, conhecida como Dona Santinha, cuja convicção religiosa e relatos sobre desestruturação familiar, endividamento e suicídios relacionados ao jogo pressionaram a decisão. “Essa decisão já expressava uma preocupação legítima com os impactos sociais e emocionais do jogo. A religiosidade de Dona Santinha reforçou uma narrativa que compreendia o jogo como porta de entrada para o sofrimento psicológico. O que era intuição moral à época, hoje é respaldado pela ciência”, afirma Suassuna.
Pesquisas contemporâneas confirmam a correlação entre jogo patológico e risco elevado de suicídio. Estudo internacional citado na audiência aponta que indivíduos com transtorno do jogo têm até 15 vezes mais chance de cometer suicídio em comparação com a população geral. No Brasil, a Revista Pesquisa Fapesp relatou o caso de um jovem que acumulou R$10 mil em dívidas com apostas online em apenas três semanas, apresentando ideação suicida.
“O jogo compulsivo gera um ciclo de euforia, culpa, endividamento e isolamento. Os sintomas são semelhantes aos da dependência química, com impacto direto nas relações familiares, no desempenho profissional e na saúde mental como um todo”, explica Suassuna. “É preciso reconhecer que estamos lidando com uma questão de saúde pública, não de moralidade individual.”
Dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com base na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), indicam que 17,8% dos adolescentes entre 13 e 17 anos já participaram de jogos com apostas. Um levantamento da Universidade Federal do Paraná (UFPR) mostra que 58% dos jogadores compulsivos fizeram sua primeira aposta antes dos 18 anos.
Para Suassuna, a exposição precoce é agravada pelo apelo publicitário. “A glamourização da vitória fácil, a presença de influenciadores e a ausência de filtros eficazes criam um ambiente propício ao desenvolvimento de padrões compulsivos. A educação emocional e financeira nas escolas é uma frente urgente de prevenção”, afirma o psicólogo.
As plataformas digitais operam 24 horas por dia, não exigem grandes valores iniciais e usam estratégias de recompensa intermitentes similares às das redes sociais, características que, segundo especialistas, aumentam o risco de compulsão.
Apesar da sanção da Lei nº 14.790/2023, que regulamenta as apostas de quota fixa no Brasil, ainda há lacunas na legislação quanto ao controle de impulsos, proteção de usuários vulneráveis e combate à publicidade abusiva. “O Estado precisa intervir com responsabilidade, escuta e prevenção. Não se trata de proibir novamente os jogos, mas de reconhecer os riscos reais e agir com base em evidências. O que começou como problema moral no passado é, hoje, uma emergência em saúde mental”, conclui Suassuna.
Por Carolina Lara
Artigo de opinião