Escassez de mão de obra no Brasil: um mito que esconde nossas feridas

por Ulisses Dalcól

Enquanto o Brasil debate se o crescimento econômico trará “falta de trabalhadores”, milhões de brasileiros seguram currículos em mãos, esperando uma chance que nunca chega. A tese de que o país pode enfrentar escassez de mão de obra, caso a economia não desacelere, soa como um conto de fadas para quem está do lado de cá do balcão: o desempregado que há meses não é chamado para uma entrevista, o jovem que desistiu de procurar emprego após 50 “nãos”, ou o profissional informal que troca a dignidade por um salário sem carteira assinada.

A contradição é evidente: como um país com 9,3 milhões de desempregados (e outros 6 milhões de desalentados, segundo o IBGE) pode, ao mesmo tempo, temer falta de trabalhadores? A resposta está menos nos números absolutos e mais nas fissuras de um sistema que prefere culpar a “falta de qualificação” a enxergar suas próprias omissões.

A farsa da escassez: quando o problema é o espelho

A narrativa da escassez de mão de obra é sedutora para quem evita olhar para o abismo social. Ela transforma um fracasso coletivo — a incapacidade de incluir — em um suposto “êxito econômico”. Afinal, se falta gente para trabalhar, é porque estamos crescendo, certo? Errado.

A verdade é que o Brasil tem mais de 40 milhões de trabalhadores informais, muitos deles subutilizados em ocupações precárias. Temos ainda legiões de jovens que, mesmo com diplomas, estão estacionados em subempregos. A tal “escassez” não é de corpos, mas de oportunidades que dignifiquem. Setores como construção civil e enfermagem reclamam da rotatividade, mas seguem oferecendo salários que não pagam nem o aluguel. É como reclamar que ninguém quer comprar um carro velho, mas insistir em vendê-lo pelo preço de uma Ferrari.

Desalentados: a geração que o Brasil apagou

Há um Brasil paralelo, invisível nas estatísticas oficiais: o dos desalentados. São 6 milhões de pessoas que não estão desempregadas, mas desesperançadas. Mulheres que largaram a busca por trabalho para cuidar de filhos sem creches, homens que entregaram currículos em todas as lojas do bairro e ouviram apenas silêncio, profissionais de meia-idade descartados por um mercado obcecado com a juventude.

Essa multidão não é “improdutiva”. Ela foi excluída por um sistema que não oferece qualificação acessível, não combate o preconceito estrutural e trata a educação como privilégio, não direito. Enquanto isso, empresas reclamam que não encontram soldadores ou técnicos em TI. Será mesmo? Ou faltou perguntar a quem está à margem, sem acesso a cursos ou transporte para chegar às zonas industriais?

Educação e juros: o círculo vicioso da desigualdade

O debate sobre mão de obra no Brasil sempre esbarra em dois monstros: a educação frágil e os juros estratosféricos. Enquanto países como Coreia do Sul e Alemanha investem em escolas técnicas integradas às indústrias, aqui ainda discutimos se o Enem é “muito difícil”. Nossos alunos estão no 60º lugar no PISA em matemática, mas queremos competir em indústria 4.0. É como tentar vencer uma maratona de salto alto.

Já os juros altos (a Selic a 14,25% em 2025) são o coquetel molotov que queima qualquer plano de expansão. Pequenas empresas não investem em treinamento, indústrias adiam contratações, e o resultado é um mercado travado. Não falta mão de obra: falta coragem para priorizar pessoas sobre spread bancário.

O futuro é um convite (não um problema)

A solução não é desacelerar a economia, como sugere o artigo, mas acelerar a justiça social. Países como Dinamarca e Canadá já provaram que é possível ter pleno emprego e salários dignos — desde que haja políticas públicas ousadas. No Brasil, isso passaria por:

  • Bolsa-Qualificação: Subsídios para que desempregados e informais se capacitem em áreas críticas.
  • Parcerias reais, não de fachada: Empresas que reclamam de falta de mão de obra poderiam financiar escolas técnicas em periferias.
  • Reforma tributária solidária: Taxar grandes fortunas para bancar universidades e creches públicas.
  • Redução da Selic: Para liberar crédito a quem quer contratar e ser contratado.

O risco real é seguir ignorando gente

O maior perigo para o Brasil não é a falta de trabalhadores, mas a falta de humanidade em seu projeto de desenvolvimento. Enquanto elites econômicas discutem métricas abstratas, há mães chorando porque não conseguem pagar um curso de informática para o filho, operários desistindo de procurar emprego após anos de CLT precarizada, e jovens talentos migrando para Uber porque suas habilidades não são valorizadas.

A escassez que assombra o país não é de corpos, mas de empatia, visão de futuro e vontade política. O Brasil não precisa desacelerar: precisa, urgentemente, olhar para trás e recolher quem ficou pelo caminho. Só assim a tal “falta de mão de obra” deixará de ser uma desculpa e se tornará, finalmente, um elogio ao nosso potencial.

Porque gente, aqui, nunca faltou.

*Ulisses Dalcól é advogado, empresário e diretor da Descomplica Comunicação. Com uma abordagem estratégica, ele integra o mundo jurídico e empresarial para criar soluções inovadoras e transformar desafios em oportunidades.

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