A Vastidão

Trecho do livro A Vastidão, de Cristian Abreu de Quevedo, transformado em conto

Prólogo

A morte definitiva da Piedade da Compaixão

Shabatzá. Nono Reino do Inferno — Sem contagem de tempo

(2.600 anos antes da história atual)

— Ei… — O jovem de olhos castanhos e roupas pretas sujas de terra, também acorrentado junto à parede de pedra, fala baixinho — Cara…

O homem encapuzado demora alguns instantes para voltar a si. Ele desmaiou em batalha, o que explica as suas vestes em farrapos.

A capa negra feita do mesmo tecido que o capuz deixa à mostra além dos olhos, algo de sua face clara e dos compridos cabelos loiros ondulados, as mãos de um jovem de aparência de pouco mais de dezesseis anos. O comprido manto negro de um preto fosco se meche. No chão, não existe nenhuma sombra do manto ou do homem que está usando ele.

— Um tariano? Aqui? — Amonsehat levanta a face e olha para o jovem rapaz, assim como ele, ao menos em aparência, com seus olhos de um azul intenso.

— Nunca pensei encontrar outro tariano em um dos nove infernos: sou Fillipi Solanus! — Fillipi arregala os olhos e lembra da primeira regra: jamais falar seu nome verdadeiro — Mentira, eu me chamo: Curupino Del Gol. Fillipi é somente para as prostitutas.

— Eu tenho cara de prostituta? — Amonsehat permanece com o rosto impassível.

Silêncio.

— Não. Não tem. — Fillipi entende que aquela resposta não foi uma piada: tem algo muito de errado com o homem que está à sua frente — O caso é que estamos presos no inferno. E o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

— Isso não tem nenhum sentido. E eu não sou tariano — Amonsehat olha para os trapos de roupa que está vestindo, mas não enxerga nada além da necessidade de se livrar das correntes que o prendem. Ele se concentra, mas sente que seus poderes estão longe de retornarem.

— Que homem difícil! — Fillipi franze o cenho — É. Você tem um sotaque estranho. Como você veio parar aqui?

— Um exército demoníaco soube que O Senhoras das Sombras estava na Terra da Magia Negra. Eu lutei, mas meus poderes não irão retornar até que eu volte ao Plano das Sombras. O dragão elemental que me acolheu também lutou, mas, os demônios estouraram um portal interplanar. E eu fui puxado por ele. O que é muito estranho, visto que ao desmaiar eu deveria ter sido teleportado para o Plano das sombras.

— Espere… VOCÊ É O SENHOR DAS SOMBRAS?! — Fillipi Grita e sua voz ecoa pela grande caverna iluminada com lava escorrendo das paredes — Não… não pode ser?! Você é humano!

— Isso é irrelevante neste momento — Amonsehat olha com atenção para o local onde estão e fica estupefato e inexpressivo — Vamos ser servidos de alimento para um dos reis infernais.

— Hã? — Fillipi balança negativamente a cabeça — Você tá maluco?! Eu toquei em uma maldita esfera e vim parar nessa terra horrorosa!

— Eu estou pronto para aceitar meu destino: a morte sempre vem — Amonsehat relaxa o corpo, fechando os olhos.

— Destino é algo inventado pela minha mãe quando meu pai não concorda com ela.

— Sua mãe é uma mulher poderosa.

Fillipi sente que o jovem de cabelos loiros à sua frente não proferiu uma piada e por isso não sorri. Ele pensa rápido: precisa evitar sua morte.

— Os demônios falaram que irão voltar e matar o seu aliado — Fillipi mente descaradamente e suas palavras saem quase inaudíveis.

Amonsehat abre os olhos e retesa seu corpo. Uma expressão de ódio toma conta de seu rosto. Fillipi sente medo ao perceber invocou uma tormenta sobre si mesmo, mas não recua em suas palavras.

— Ouvi eles falando quando trouxeram você desacordado: que iriam atrás do dragão que acolheu você.

— Você sabe me dizer quem disse isso, Curupino?

— … O rei infernal… — Fillipi quase ri ao ouvir seu nome falso. “Que nome horrível”, pensa.

— Serão as últimas palavras que ele disse, Curupino.

Amonsehat reflete por um momento e a ideia de usar o dom de Arut é afastada. Ele se lembra de Adarun, sua mãe, dizendo que “a sobrevivência é o grande dom que ela daria para ele como um presente da eternidade do tempo”.

— כתר פרעה — Fala Amonsehat com e uma coroa dourada feita de pura luz dourada repousa em sua cabeça. Ele puxa forte as correntes que prendem suas mãos e a caverna inteira estremece.

Fillipi olha para cima e respira fundo: agora já não é mais possível voltar atrás. Ele sente que algo terrível está para acontecer. “Tárion, se eu sair vivo deste lugar, eu juro que vou ao templo até o dia da minha morte uma vez ao mês… Toda semana não vai rolar”.

Eles estão aos pés de um vulcão, no interior de uma das cavernas. Da rocha vulcânica surgem estalagmites e estalactites por toda a extensão que os olhos alcançam.

A capa preta aveludada e puída de Amonsehat se agita e um círculo vermelho com inscrições douradas se abre diante dele. Uma luz avermelhada irradia e dela saem raios dourados que atingem a coroa que está sobre ele. As grandes correntes são estilhaçadas e os estilhaços caem fazendo o chão cantar. Amonsehat sabe que essa foi o último resquício dos poderes do Oculto: somente no plano dos vivos ele poderá usar novamente a Arte do Ocultismo.

— Ei, e eu?

— Tu serás a isca para eu atrair o rei infernal.

— Eu estou muito magrinho para ser comido.

— Isso é irrelevante, Curupino.

— Cara… Me chame de Fillipi.

— Tu me falaste que seu nome é Curupino e que Fillipi era somente para prostitutas.

— Eu me enganei.

— Com o próprio nome? Isso é incomum.

— Foram as pancadas na cabeça.

— Entendo. Eu já levei muitas. Mas nenhuma delas me fez esquecer meu nome.

— Como é o seu nome?

— Amonsehat — Ele soletra ao perceber o rosto contorcido de Fillipi — A-M-Ó-Ñ-S-E-H-Á-T. É em arutiano moderno.

— Moderno pra quem? — FIllipi reflete por um momento — Pera… Você é de Arut?

— Não. Eu não sou “do” meu pai — Amonsehat fica confuso — Mas sou da terra de Arut.

— “Lamunsefat” — Fillipi tenta pronunciar o nome do Senhor das Sombras — Você poderia ser tariano, Dono das Sombras.

— Eu JAMAIS me estabeleceria em Tárion! É uma terra de bandidos, arruaceiros, ladrões e mentirosos. NUNCA teria morado em uma terra conquistada por mentiras, traições e pilhagem!

— Olha… Minha mãe, que você disse ser poderosa, disse que não devemos cuspir para cima… Vai que o vento faz voltar e cair em nossa cara.

Amonsehat fica surpreso.

— É uma sabedoria imensa da senhora sua mãe. Eu nunca havia pensado nessa questão — Ele reflete por um momento — Mas eu não entendi qual a relação do cuspe voltar com eu afirmar categoricamente que NUNCA E JAMAIS teria morada em Tárion. NADA nesse mundo me faria colocar os pés em uma terra cheia de ladrões e mentirosos.

— Quero viver para dizer para você: o cuspe voltou, né?

Silêncio.

— Eu preciso invocar a Lâmina das Almas. Acredito que o exército de demônios estava atrás dela.

— Eu não tô entendendo nada… — Fillipi olha para cima e sente dor nos pulsos e nas costas, pois está acorrentado há horas — Me solta, por favor, seu Moço das Sombras Amonsehat.

— Está bem — Amonsehat levita na direção de Fillipi e seu manto adquire vida própria adquirindo um aspecto fantasmagórico.

— Por “está bem” você quer dizer que vai me soltar sem querer nada em troca? Eu pergunto isso por… — Fillipi recobra a conversa e arregala os olhos — VOCÊ É O FILHO DO DEUS ARUT?! Por Tárion! — Fillipi fica impressionado e sente um medo que jamais havia sentido em sua vida — Você come almas?

— Eu não — Amonsehat toca as correntes de Fillipi e elas se partem em mil pedaços — Mas ela sim! — Uma espada longa feita de três lâminas prateadas retorcidas em espiral aparece cortando o ar e quando ela se materializa por completo um estrondo irrompe na caverna.

Fillipi tenta disfarçar seu assombro com o que está acontecendo diante dos seus olhos.

— Que idade você tem, Senhor das Sombras? Eu daria uns dezesseis anos…

— Dois mil e setecentos e um anos completos — Responde Amonsehat com um leve sorriso no rosto — Que venha o rei infernal com seu exército: eu e o Curupio vamos batalhar!

— … eu não sei o que dizer… estou preso no inferno com o filho de um deus… acho que me mijei… saiu umas gotinhas… Tárion ajuda eu que só tenho dezoito anos… tenho muitas mulheres para conhecer e gente pra roubar em nome da Dinastia….

Um tremor solta algumas estalactites que se espatifam no chão pedregoso da caverna. A lava que escorre pela parede aumenta de volume e um cheiro mais fétido que enxofre toma conta do ar já rarefeito: o rei infernal se aproxima.

— Me diz que você tem mais espada?!

— Não. Mas tu tens uma boa intenção de batalhar. Confie nisso para sobreviver.

— De boa intenção o inferno tá… — Fillipi faz uma careta.

O trecho do livro “A Vastidão” faz parte da nova saga da IS Editora do autor Cristian Abreu de Quevedo que sai pelo selo Impérios Sagrados. Você pode adquirir os livros do autor Clicando Aqui! Acompanhe as novidades!

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