A expectativa para 2021 na Medicina e na especialidade: Cirurgia Vascular
Se o objetivo deste artigo fosse avaliar os impactos da pandemia sobre a Medicina e sobre a cirurgia vascular no ano de 2020, passaríamos a relatar o que já assistimos.
Como podemos resumir o ano da Covid sob o ponto de vista de uma perspectiva histórica ampla?
O terrível custo do coronavírus poderia demonstrar o despreparo da humanidade diante do poder da natureza. Na verdade, 2020 mostrou que a humanidade está longe de ser despreparada. As epidemias não são mais forças incontroláveis da natureza. A ciência as transformou em um desafio administrável. Em 10 de janeiro do ano passado, os cientistas não só isolaram o vírus causador, mas também sequenciaram seu genoma e publicaram as informações. Demorou alguns meses para que o coronavírus se espalhasse pelo mundo e infectasse multidões. Alguns meses depois, foram descritas algumas das medidas que poderiam desacelerar e interromper as cadeias de infecção. Em pouco tempo, muito menos de um ano, várias vacinas, aparentemente eficazes, estavam em produção em massa. Na guerra entre humanos e patógenos, nunca os humanos foram tão rápidos e poderosos.
A tecnologia da informação foi vital desde o início do processo. No passado, deter as epidemias era praticamente impossível porque os humanos não podiam monitorar as cadeias de infecção em tempo real e porque o custo econômico dos bloqueios prolongados era proibitivo. Em 1918, você podia colocar em quarentena as pessoas que contraíam a temida gripe espanhola, mas não podia rastrear os movimentos de portadores pré-sintomáticos ou assintomáticos. E se você ordenasse que toda a população de um país ficasse em casa por várias semanas, isso teria resultado em ruína econômica, colapso social e fome em massa.
A vigilância digital tornou muito mais fácil monitorar e localizar os pacientes-chave. Com isso, a quarentena pôde ser mais seletiva.
Mas todos os sucessos sem precedentes da ciência não resolveram a crise da Covid-19. A pandemia passou a ser vista como uma calamidade natural. Simultaneamente, surgia um verdadeiro dilema político. Na Peste Negra, responsável pela morte de milhões, ninguém atribuiu responsabilidade maior aos monarcas. Apesar da morte de um terço dos ingleses, o rei Eduardo III não perdeu o reinado. A solução estava muito além das pessoas.
Atualmente, a ciência dispõe de ferramentas para deter a pandemia. Inúmeras e variadas nações, do oriente à Oceania, demonstraram seu poder de deter a epidemia, mesmo antes de dispor de vacina. Essas ferramentas, no entanto, têm um alto preço econômico e social. Muitos dirigentes acreditam que poderiam vencer o vírus. Mas têm dúvidas se estão dispostos a pagar o preço dessa conquista. Esse é o grande ônus dos políticos nos dias atuais.
Alguns países mais organizados ou eventualmente menores tiveram um desempenho notável na condução da tragédia. Mas a humanidade, constituída de fronteiras intermináveis e facilmente acessíveis, não conseguiu conter a pandemia e nem sequer estabelecer um projeto global para reconquistar a liberdade superando definitivamente o vírus. Assistimos, no início de 2020, a um acidente em câmera lenta. As comunicações eficientes nos permitiram assistir a tragédia em tempo real, iniciando em Wuhan e passando em seguida pela Espanha, Itália e depois pelo mundo todo, incluindo o Brasil. Tardiamente, se decidiu timidamente pelo início do fechamento de fronteiras. Mas já era tarde.
De acordo com o escritor Israelense Yuval Noah Harari, muito mais fácil do que achar soluções atuais, sempre foi discutir o que já passou. Os acontecimentos de 2020 certamente haverão de render muita repercussão pelas próximas décadas. Porém, uma coisa é certa, os políticos de todas as características deverão refletir muito sobre três aspectos fundamentais:
Primeiro, vamos manter muito claro que a infraestrutura digital foi nossa tábua de salvação. Deve ser protegida a todo custo. Ela representa nossa primeira proteção.
Em segundo lugar, o sistema público de saúde deve merecer um investimento exemplar e prioritário. Parece óbvio, mas nem sempre oferece aos políticos a notoriedade desejada.
Terceiro, o mundo deve agir em conjunto no sentido de monitorar e, a partir daí, evitar a disseminação de epidemias e sua transformação numa pandemia global. Na guerra eterna entre seres humanos e agressores biológicos, a linha de frente passa pelo corpo de cada ser humano. Essa linha é fundamental. Sendo partida em qualquer canto do nosso mundo, todos estarão em perigo. Simplesmente, a leitura do que aconteceu. Esse fenômeno aproxima as diferentes camadas sociais. Ricos de países muito desenvolvidos passam a ter especial interesse em proteger aos menos favorecidos de países até muito primitivos, buscando sua própria segurança. Se um novo patógeno saltar de um primata, no ermo do mundo para algum humano, em dias, poderá estar na Avenida Paulista.
Essas foram, basicamente, as árduas tarefas da Medicina em 2020. Os vasculares, acompanhando esse mergulho científico radical, começaram a identificar as complicações circulatórias do vírus. Ao se aprofundar, foram desenvolvendo as melhores terapêuticas para debelar essas intercorrências, frequentemente graves.
No campo das doenças vasculares, um trabalho científico, publicado em 2021, analisando os resultados em 1.195 artigos, encontrou um percentual muito elevado de 25% de fenômenos de trombose venosa em pacientes internados, aumentando para 48% em 14 dias, mesmo com o uso da anticoagulação.
Embora as tromboses arteriais tivessem sido menos frequentes, ocorrendo em 1 a 16% dos pacientes, suas consequências foram muito mais graves levando a amputações e até morte, mesmo em indivíduos mais jovens.
Mas todo esse extenso texto serviu apenas para fazer um retrospecto sumário do filme real que passou diante dos nossos olhos. E agora, como antecipar ou prever o que nos espera? Aqui no Brasil, em dezembro voltamos a acreditar que Deus seria realmente brasileiro. Assistimos o despencar melodioso dos casos de covid 19. Cheios de esperança e carentes de uma liderança nacional que nos conduzisse, muitos acreditaram piamente que a pandemia se afastava por decreto. Voltaram a se aglomerar, abandonaram as desconfortáveis máscaras e nosso “Mistério” da Saúde não se empenhou como deveria na aquisição de vacinas necessárias para atender este país continental.
Estamos em março. A pandemia explodiu como nunca. A Medicina se defronta com desafios inusitados, tendo que escolher quais pacientes receberão tratamento intensivo e urgente antes. Não há mais leitos. E agora o governo busca inútil e desesperadamente fontes fornecedoras de vacina. Enquanto isso vão surgindo as novas cepas do vírus, resistentes a tudo que já existe.
Então, e sobre as perspectivas futuras da Medicina e da especialidade vascular? A Medicina, aliada à ciência e tecnologia, precisa desenvolver imunizantes capazes de controlar o vírus chinês original, incluindo as variantes regionais. O original seria ironicamente efêmero como muitos produtos, mas as variantes nacionais se prolongariam também com ironia ao som da música de carnaval.
Além desse esforço imunizador, obtido, como dissemos anteriormente, em tempo recorde, a Medicina precisa desenvolver terapêuticas cientificamente comprovadas e eficazes para tratar precocemente o coronavírus e também para alcançar suas complicações secundárias. É importante lembrar que a infecção viral desaparece rapidamente como as causadas por influenza. Porém, o grave, e que permanece por mais tempo, são as complicações secundárias sobre diferentes órgãos. Destaca-se como principal a degeneração pulmonar.
Nós, os vasculares, seremos muito mais exigidos para acompanhar e tratar a grande quantidade de complicações circulatórias. Ainda não conhecemos seu mecanismo de ação, mas precisamos estar atentos para tratá-las precocemente.
Tudo que discutimos diz respeito ao atendimento dessa inusitada enfermidade e sua cruel consequência, a pandemia 2020/21. Por fim, faltou destacar as dificuldades relativas à Medicina geral e comum, não covid. Tanto pacientes como terapeutas procuram evitar todas as terapias passíveis de adiamento. Correções estéticas, doenças menos graves e até mesmo enfermidades contornáveis. Tudo para evitar ambientes médicos, hospitalares e até de diagnóstico. Assim sendo, o agravamento do quadro atual conduz a uma crise sem precedente entre médicos e serviços auxiliares. Assim como um represamento de doentes que supostamente podem esperar. Passada a pandemia de covid, é provável que enfrentemos uma pandemia terapêutica. Mas aí já estaremos falando de uma epidemia alegre. Certamente, receberemos esse momento com ansiedade e dedicação.
A última pandemia enfrentada foi em 1918. Após pouco mais de dois anos se extinguiu sem tratamento específico nem imunização. Podemos ter a esperança de redenção num prazo muito mais curto. Além dessas reflexões, qualquer outra conclusão pertencerá a futurólogos ou preditores mediúnicos. Na condição de meros mortais, fazemos apenas considerações muito mais esperançosas do que convictas.
Pedro Pablo Komlós
Médico Angiologista e Cirurgião Vascular
Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular
(Texto baseado em artigo científico encabeçado pelo Dr. Fedor Lurie, PhD da Universidade de Michigan, publicado em janeiro de 2021 no Vascular and endovascular Journal, (The impact of covid-19 on vascular surgery practice: A systematic review) e texto de Yuval Noah Harari, de março de 2021, publicado no jornal britânico Financial Times (Lições de um ano de covid: O que podemos aprender com os avanços científicos e fracassos políticos para o futuro).