A Medicina e os Desafios da Vida Afetiva: Além da Especialidade

Como a prática médica influencia, mas não determina, a satisfação conjugal dos profissionais de saúde

Como será a dinâmica entre a vida conjugal e a prática médica? O Medscape Physician Lifestyle and Happiness Report 2024 traz justamente esse tipo de insight ao mostrar que algumas especialidades apresentam índices mais altos de satisfação conjugal do que outras. De acordo com o estudo, 91% dos pneumologistas afirmam viver casamentos muito bons ou bons. Otorrinolaringologistas e endocrinologistas aparecem logo em seguida, ambos com 90%, enquanto oftalmologistas registram 89% e gastroenterologistas chegam a 87%. Áreas como oncologia e dermatologia apresentam percentuais inferiores, com 74% e 70% respectivamente. Considerando o total de profissionais, 82% dos médicos avaliam seus casamentos como muito bons ou bons, 14% classificam como regulares e 4% como ruins ou muito ruins.

Os resultados desafiam leituras simplistas. É comum imaginar que especialidades com jornadas mais leves ou horários previsíveis favorecem automaticamente relações mais estáveis, mas o levantamento mostra que isso não se sustenta de forma uniforme. Há especialidades de alta intensidade que apresentam níveis elevados de satisfação conjugal e há áreas com rotinas tradicionalmente mais estáveis que caem significativamente de um ano para outro. A própria dermatologia ilustra essa oscilação. Em 2022, o índice era de 90%. Em 2024, caiu para 70%. A Medscape destaca que essa variabilidade é recorrente, e em 2023 nenhum campo havia ultrapassado a marca de 90%.

O que esse conjunto de dados reforça é a necessidade de abandonar a ideia de que a especialidade escolhida determina o desfecho da vida afetiva. Correlação não é causalidade e satisfação conjugal não nasce apenas da rotina profissional. Estudos sobre saúde emocional de médicos indicam que o alinhamento de expectativas tem peso decisivo. Casais que compreendem desde cedo a exigência da formação e da prática tendem a lidar melhor com períodos de ausência, plantões prolongados e desgaste emocional. Também é preciso considerar a percepção subjetiva. Alguns levantamentos sugerem que médicos, especialmente homens, tendem a classificar seus relacionamentos de forma mais positiva do que seus parceiros, o que levanta dúvidas sobre o quanto esses percentuais refletem plenitude ou apenas estabilidade aparente.

O relatório convida a uma reflexão mais profunda sobre como a medicina se entrelaça com a vida íntima. A profissão molda identidades, reorganiza prioridades e influencia não apenas o tempo disponível para o convívio, mas também a energia emocional que cada médico leva para casa. A rotina pode facilitar ou dificultar momentos de presença, mas o que realmente sustenta um casamento é a escolha cotidiana de construir um vínculo atento, comunicativo e consciente, mesmo diante das pressões inerentes à prática médica.

No fim das contas, nenhum gráfico explica como alguns casamentos prosperam e outros não. A especialidade pode criar contextos, mas não determina trajetórias. O que define a qualidade de uma relação é o compromisso diário com o cuidado mútuo, com a escuta e com a intenção de estar presente de forma real. A medicina influencia, mas não decide. Quem decide são as pessoas.

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Por Rafael Duarte

fundador e CEO do Grupo RD Medicine; médico especialista em Anestesiologia no Brasil e em Medicina Interna nos EUA

Artigo de opinião

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