Como a Inteligência Artificial Está Transformando e Desafiando o RH no Brasil

Entre avanços tecnológicos e riscos éticos, a automação no recrutamento exige equilíbrio para preservar direitos e dignidade dos trabalhadores

Diante da enxurrada de notícias sobre Inteligência Artificial, seria fácil imaginar que este texto parte de alguém avesso à tecnologia. Não é o caso. Como advogado trabalhista e pesquisador do tema, reconheço que a IA pode ser uma aliada poderosa especialmente em setores que lidam com grandes volumes de dados, como o de Recursos Humanos. Mas justamente por isso precisamos conversar seriamente sobre como a automatização de alguns processos tem impactado, de forma real e sensível, a vida dos trabalhadores.

Essa reflexão me acompanha há algum tempo, mas ganhou força ao me deparar com um artigo da romancista indo-americana Sarah Thankam Mathews, que descreveu a busca por emprego em tempos de automação como “um ritual de humilhação”. Embora sua análise trate do mercado de trabalho dos Estados Unidos, arrisco afirmar que esse amargor não é exclusividade de lá. No Brasil, crescentemente digitalizado, há sinais concretos de que parte dos candidatos e empregados já experimentam sensações semelhantes.

Segundo pesquisa recente da plataforma Think Work, quase 80% das empresas brasileiras já utilizam ferramentas de IA no RH, seja para triagem de currículos, entrevistas virtuais, avaliação de desempenho ou até recomendações sobre promoções e desligamentos.

No Brasil, não existe uma lei específica sobre Inteligência Artificial, muito menos sobre sua aplicação no departamento de Recursos Humanos. Isso não significa, porém, que o uso dessas ferramentas se dê em uma terra sem regras. Ele deve obedecer ao conjunto normativo já existente: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), princípios constitucionais e, sobretudo, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Isso implica, na prática, que dados pessoais de candidatos e empregados só podem ser coletados e tratados com finalidade legítima, consentimento claro e segurança adequada. Parece simples, mas não é. Com algoritmos que processam milhares de informações por segundo, garantir transparência sobre o que é coletado, como é analisado e com que finalidade se torna um desafio jurídico e ético cada vez maior.

Outro risco urgente é a discriminação algorítmica. Sistemas de IA são treinados com dados reais, mas dados reais carregam vieses históricos. Se uma empresa sempre promoveu mais homens do que mulheres, ou sempre contratou pessoas de determinada faixa etária, o algoritmo aprenderá e replicará esse padrão.

Imagine um sistema que, “sem perceber”, favorece currículos masculinos ou exclui automaticamente candidatos acima de 50 anos. Isso não só reforça preconceitos como abre espaço para ações judiciais por práticas discriminatórias. E mais importante: a responsabilidade é da empresa, mesmo que a decisão tenha sido tomada “pela máquina”.

Se na contratação o risco já é significativo, no desligamento ele é ainda maior. Encerrar um contrato de trabalho não é um cálculo matemático. Envolve contexto, análise individualizada, justificativa clara e a possibilidade de defesa. Delegar tal decisão exclusivamente a um algoritmo é abrir caminho para injustiças e para custos trabalhistas muito mais altos do que qualquer tecnologia prometida.

Por isso, a melhor prática não é substituir o RH pela IA. É usar a tecnologia como ferramenta de apoio, não como juiz final. Algoritmos podem ajudar a organizar dados, sinalizar tendências, apontar alertas. Mas a decisão, especialmente quando atinge vidas e trajetórias, deve ser humana.

A rapidez da inovação não pode ignorar os direitos fundamentais dos trabalhadores. O entusiasmo empresarial não pode atropelar garantias básicas de privacidade, igualdade e dignidade. E a busca por eficiência não pode transformar processos seletivos em verdadeiros rituais de humilhação.

Há espaço para a tecnologia no futuro do trabalho. Mas esse futuro só será verdadeiramente humano se lembrarmos que, por trás de cada dado processado, existe uma pessoa com história, expectativas e direitos que não podem ser automatizados.

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Por Dr. Arthur Felipe Martins

advogado trabalhista, especialista em direito e processo do trabalho e direito acidentário, mestrando em direito do trabalho pela PUC-SP, professor em cursos jurídicos voltados ao direito do trabalho e correlações com o direito previdenciário

Artigo de opinião

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