A Nova Guarda Nacional e a Anatomia do Autoritarismo Moderno no Brasil

Por que o perigo institucional do século XXI não precisa de partido único, ditador carismático ou botas marchando na rua — basta arquitetura de poder mal desenhada.

Num país obcecado pela superfície — as frases de efeito, os personagens, as brigas de Twitter — quase ninguém olha para o que realmente importa: a infraestrutura do poder. Não o poder eleitoral, que vai e vem a cada quatro anos, mas o poder coercitivo. Aquele que decide quem pode usar força, quando, e com que limites.

É aí que a proposta de criação de uma Guarda Nacional Civil permanente, sugerida na nova cartilha de segurança da Fundação Perseu Abramo, ganha relevância — e acende alertas. Não porque vá instaurar um regime autoritário amanhã, mas porque abre a porta para algo que democracias frágeis deveriam temer por princípio: a concentração do monopólio da força nas mãos da União.

Essa discussão não é nova na história. Ela atravessa França, Itália, Alemanha, México, Estados Unidos e todos os países que aprenderam, cedo ou tarde, que quem controla as armas controla o destino político da nação.


O mito do partido único — e o real motor do autoritarismo moderno

Hannah Arendt já dizia: regimes totalitários não nascem com tanques nas ruas, mas com instituições enfraquecidas e poder concentrado.

E aqui está o primeiro ponto incômodo:
não é preciso partido único para caminhar rumo ao autoritarismo.

O autoritarismo contemporâneo é muito mais sutil que seus antepassados — ele opera como infiltração, não como ruptura. Ele precisa apenas de:

  • políticos dispostos a negociar seu apoio em troca de favores;

  • instituições de fiscalização esvaziadas;

  • forças de segurança cooptáveis;

  • e um governo central capaz de agir sem restrições efetivas.

É exatamente por isso que o modelo brasileiro é vulnerável: temos o formato institucional que permite captura, mesmo que isso ainda não tenha acontecido de forma plena.


O enfraquecimento silencioso das polícias estaduais

Alguns argumentam que não estamos desmantelando polícias estaduais. E é verdade: não estamos.
Mas o ponto é outro:

não é preciso desmontar o que já está desmontado pela erosão lenta.

As PMs e PCs brasileiras:

  • têm déficit gigantesco de efetivo;

  • estão sucateadas;

  • sofrem com disputas internas;

  • têm baixa capacidade de investigação;

  • contam com pouca padronização;

  • e operam com metáforas institucionais herdadas de 1970.

No Paraná, por exemplo, havia mais policiais per capita em 1980 do que hoje.
Não porque alguém destruiu — mas porque ninguém cuidou.

Esse é o tipo de fragilidade que, em outros países, abriu espaço para forças nacionais substituírem gradualmente as estruturas locais. Não por golpe, mas por praticidade administrativa — o que é ainda mais perigoso, porque não gera resistência social imediata.


O exemplo da Polícia Federal — e o alerta que ninguém quer admitir

Quem quiser entender o risco de uma Guarda Nacional precisa olhar para a Polícia Federal dos últimos 8 anos.

  • No governo Bolsonaro, tentou-se aparelhar a PF para blindar aliados.

  • No governo Lula, a PF voltou a operar com força, mas agora como vetor de correção — ainda assim, politicamente sensível.

  • Em ambos os casos, a PF mostrou o óbvio: instituições policiais são suscetíveis à pressão política, mesmo quando têm regras claras.

Se a PF — que é altamente técnica, seletiva e profissional — já foi objeto de disputa explícita, o que dizer de uma força federal com milhares de agentes armados, espalhados pelo território e com mandato amplo?

A questão não é ideológica.
A questão é estrutural.


O que a história nos ensina?

🇩🇪 Alemanha pós-nazismo

Criou um sistema com travamentos extremos porque aprendeu que centralizar polícia nas mãos do governo federal é a rota mais rápida para o autoritarismo.

🇺🇸 EUA

Possuem a National Guard, mas ela é estadual por padrão. A federalização é exceção e objeto de controle judicial constante.
E o Posse Comitatus Act amarra a atuação das Forças Armadas em solo doméstico.

🇫🇷 França e 🇮🇹 Itália

Modelos com gendarmeries fortes, centralizadas, disputando espaço com polícias regionais — funcionam, mas porque foram moldadas ao longo de séculos e com controles rígidos.

🇲🇽 México

Evoluiu de uma polícia federal para uma Guarda Nacional militarizada, que hoje é alvo de críticas internas e internacionais, acusada de abusos e instrumentalização governamental.

O Brasil, se seguir pelo caminho da Guarda Nacional, se aproxima mais do modelo México/Itália do que do modelo EUA/Alemanha.
E isso deveria, no mínimo, gerar prudência.


**A verdadeira pergunta não é “isso é fascismo?”

A pergunta é: “esse é o tipo de poder que queremos que qualquer futuro governo tenha?”**

A arquitetura institucional deve ser desenhada para resistir ao pior governante imaginável, não para servir ao governante atual.

Hoje, muitos confiam porque “é só combater crime”.
Mas amanhã?

  • E se um presidente quiser usar a força nacional para pressionar governadores?

  • E se um governo hostil aos estados opositores quiser patrulhar seus territórios?

  • E se uma crise institucional gerar uso político da tropa?

  • E se a Guarda Nacional virar instrumento de coerção eleitoral?

Não é preciso golpe.
Não é preciso tanque na rua.
Não é preciso ditador de bigode.

O autoritarismo brasileiro, se vier, não vestirá farda — vestirá legalidade.


Conclusão: a porta não está aberta — mas a dobradiça está preparada

Criar uma Guarda Nacional Civil não transforma o Brasil num regime autoritário.
Mas cria a infraestrutura necessária para que um governante autoritário, futuramente, tenha meios de ação que hoje não existem.

E esse é o ponto central deste artigo:

👉 O perigo não está no governo que propõe a força, mas no governo que, um dia, poderá controlá-la.

A história não é feita de intenções, mas de estruturas.
E estruturas mal desenhadas cobram seu preço quando já é tarde demais.

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