Do sertão à distopia: o Brasil em crise no romance “Os Interiores” de João Matias

O romance de estreia do escritor cearense João Matias, “Os Interiores” (Editora Patuá), traz uma narrativa potente que mistura distopia e memória regional para refletir sobre as crises sociais, climáticas e políticas do Brasil contemporâneo. Com 164 páginas, a obra aborda temas urgentes como violência de gênero, militarização, mudanças climáticas e a difícil realidade dos retirantes nordestinos.

Ambientado nos interiores do Nordeste, o livro constrói uma trama que dialoga com acontecimentos recentes do país, utilizando elementos distópicos para criar uma atmosfera de tensão e horror. Conforme destaca o escritor e crítico literário Sérgio Tavares, “Os Interiores se estrutura, em grande parte, numa espécie de road book, em que cenas brutais e diálogos afiados se cruzam num fluxo de tensão que flerta com o novo horror, ao mesmo tempo que traz em suas elipses referências aos anseios reacionários de um Brasil recente.”

A protagonista Tieta é o centro da narrativa. Marcada pelas privações da infância e pelas violências sofridas, ela enfrenta homens para recuperar as terras de seus antepassados. Em um ato extremo, Tieta assassina seu marido, o general Mauro Müller, para reivindicar o que é seu, iniciando uma jornada pelo sertão em busca de justiça e pertencimento. O autor ressalta que o livro também aborda a questão de gênero, mostrando a trajetória de superação da personagem diante das violências enfrentadas.

A geografia do sertão ganha protagonismo na obra. João Matias destaca que gosta de narrativas em que a paisagem tenha “sua própria eloquência” e que os personagens dialoguem com o espaço, tornando-o sujeito e objeto da narrativa. Ao longo do livro, as transformações e ameaças ambientais reforçam o caráter simbólico da ambientação, evidenciando o descaso e o colonialismo que marcam a região.

Além da ficção, “Os Interiores” se ancora em fatos históricos, como os campos de concentração para retirantes das secas no início do século XX, conhecidos como “currais do governo”. O autor relaciona esses episódios ao conceito contemporâneo de refugiados climáticos, ampliando a reflexão sobre a crise social e ambiental brasileira.

João Matias, natural do Ceará e professor universitário, construiu antes uma carreira sólida como contista e roteirista. Influenciado por autores como Rachel de Queiroz e Rubem Fonseca, ele busca uma linguagem clara, objetiva e irônica, que mistura realidade e ficção para provocar no leitor uma tensão constante entre calma e violência.

Com “Os Interiores”, o autor oferece uma obra que é ao mesmo tempo um retrato do Brasil atual e uma homenagem literária, inspirada no clássico “Cândido ou O Otimismo”, de Voltaire. Através de uma narrativa que une o regional ao universal, o romance convida à reflexão sobre os desafios que atravessam o país, especialmente para as mulheres e os mais vulneráveis.

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