A batida que une gerações: o papel sociocultural do samba no Brasil
Como o samba transcende a música para ser uma tecnologia afetiva, resistência cultural e espaço de protagonismo feminino
O samba, ritmo que pulsa nas veias do Brasil, é muito mais do que um gênero musical ou uma festa de Carnaval. É um “artefato de tecnologia afetiva” que traduz a ambiguidade da identidade nacional, reconta a história dos marginalizados e serve como linhagem de resistência para a música periférica contemporânea.
A importância do samba na formação da identidade nacional não reside na sua escolha como “símbolo do Brasil”, mas em sua capacidade de expressar, no corpo e no gesto, a complexa experiência de ser brasileiro. O samba nasce de comunidades negras no pós-abolição, que precisaram se reinventar em seu cotidiano, nas relações de parentesco, nas festas e na espiritualidade, tudo isso em cidades que os empurravam para as margens, nos morros e favelas.
O ritmo reconta a história dos esquecidos, dos marginalizados, daqueles que não tinham voz. Mais que isso, o samba é uma tecnologia afetiva: cria laços, suspende conflitos, organiza o tempo e devolve dignidade a corpos historicamente controlados e higienizados.
Apesar do destaque atual de gêneros como funk e rap, o samba mantém sua vitalidade por compartilhar com eles uma história comum de luta e marginalização. Historicamente criminalizado e desqualificado, o samba enfrenta o mesmo desafio que o funk e o rap: lutar por reconhecimento cultural. Todos surgem na periferia, com corpos negros, e precisam conquistar seu espaço.
O samba é o “pai que abriu as portas” para a visibilidade desses ritmos contemporâneos. Um exemplo emblemático é o encontro entre a cantora pop Anitta e um ícone da velha-guarda da Império Serrano na Marquês de Sapucaí, que simboliza essa linhagem de resistência e reconhecimento mútuo.
As escolas de samba são verdadeiras “escolas da vida”, não apenas agremiações festivas. Originadas dos ranchos carnavalescos do século XIX, elas incorporam uma estrutura de ensino e transmissão de saberes que vão além do musical, abrangendo aspectos sociais e corporais.
Criado na escola de samba Porto da Pedra, conheço de perto esse caráter formativo e pedagógico. Minha família é composta por pessoas do samba; meus irmãos aprenderam a tocar tamborim na bateria da escola, e meu pai é compositor ativo. O samba não é só festa, é também aprendizado e cultura.
Além disso, a Universidade Livre do Carnaval (UniCarnaval) exemplifica essa dimensão educativa, formando profissionais para a economia criativa do Carnaval.
Longe dos espetáculos do Carnaval, as rodas de samba contemporâneas, especialmente em locais como a Pedra do Sal, um quilombo urbano na “Pequena África” carioca, funcionam como territórios de memória e resistência. São espaços de sociabilidade comunitária que convocam a memória ancestral e reafirmam a existência da comunidade remanescente de quilombo. O que se produz ali é uma narrativa oral e um comentário político, onde as ancestralidades se reencontram, e o bater de palmas remete às giras das religiões de matrizes africanas.
A presença feminina no samba é fundamental. As Tias Baianas, como Tia Ciata e Tia Amélia, foram a base do samba, acolhendo músicos e criando espaços de resistência que permitiram a sobrevivência do ritmo apesar da repressão. Contudo, essa liderança feminina foi muitas vezes invisibilizada. Dona Ivone Lara, por exemplo, precisou usar nomes de terceiros para que suas composições circulassem em um ambiente majoritariamente masculino.
Apesar das conquistas, as barreiras estruturais persistem. Até hoje, nenhuma mulher é intérprete oficial solo de uma grande escola de samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro, nem mestra de bateria. No samba, o microfone e a bateria são os centros de comando. Quando as mulheres são excluídas desses postos, a mensagem é clara: o sistema ainda não reconhece plenamente sua liderança, relegando-as a papéis estéticos como musas e rainhas de bateria.
O samba não teria acontecido sem a força, inteligência e articulação das mulheres, que são essenciais para sua existência e continuidade.
Por Lucas Souza
Professor do curso de Antropologia da UNIASSELVI, criado na escola de samba Porto da Pedra, especialista em samba e cultura afro-brasileira
Artigo de opinião


