Reestruturando a Cultura para Combater a Violência contra a Mulher
Como desconstruir estereótipos e promover a equidade para reduzir feminicídios e fortalecer a proteção feminina
O dia 25 de novembro é marcado como o Dia Internacional da não violência contra a Mulher, data instituída pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1999, com o objetivo de intensificar o debate sobre a violência contra as mulheres. No Brasil, mesmo diante de tantos avanços sociais e legislativos, ano após ano, é observado um aumento crescente da violência contra as mulheres. Em 2024, foram registrados 1492 casos de feminicídios, o que equivale a quatro mulheres mortas por dia. No primeiro semestre de 2025, houve 718 casos.
Os dados da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado, também demonstram a dimensão do problema no país:
– Denúncias (Janeiro-Julho 2023): foram registrados 86.000 casos, com uma média de 17 denúncias por hora.
– Vítimas ao longo da vida: mais de 25,4 milhões de brasileiras já sofreram violência doméstica.
– Recorrência: cerca de 22% das mulheres que sofreram violência relataram um episódio nos últimos 12 meses.
– Local mais comum: a residência da vítima é o cenário mais frequente de violência, tanto em denúncias quanto em notificações gerais.
– Autores: na maioria dos casos, o agressor é o atual ou ex-companheiro, namorado ou marido.
Homens sempre foram violentos e mulheres frágeis?
Diante do número crescente de violência contra as mulheres e da queda do número dos casamentos e da maternidade, a advogada e pesquisadora Dra. Fernanda Las Casas, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), iniciou sua pesquisa para sua tese de doutorado com duas questões fundamentais:
1. O homem é de fato violento por natureza?
Os meninos na primeira infância, vivendo em um ambiente saudável e harmônico, são empáticos, gentis e amorosos. “É certo que perdemos estes meninos em algum momento entre a infância e a fase adulta para a violência, protagonizando o papel de algozes das suas mulheres”, observa a advogada.
2. As mulheres, de fato, são frágeis e vulneráveis?
As estatísticas mostram meninas sendo abusadas na infância, não incentivadas a prosseguir com os estudos e cuidando de seus irmãos menores. “Essas meninas na fase adulta, ao se relacionarem com homens, enfrentam a sobrecarga de trabalho externo, com a família e filhos, situações de violência de todas as formas. Para sobreviverem, precisam de muita força interna para não sucumbirem. Não vejo fragilidade ou vulnerabilidade natural, mas sim uma vulnerabilidade incidental, imposta pela forma de organização cultural que vivemos em nossa sociedade”, analisa Dra. Fernanda Las Casas.
Mitos da vulnerabilidade e da maternidade perpetuados ao longo dos anos
A tese de doutorado da Dra. Fernanda Las Casas, que resultou no livro “Família: mitos da ancestralidade e crise da maternidade”, trouxe respostas históricas sobre como as mulheres foram se ‘tornando’ submissas e frágeis aos olhos da sociedade. “As mulheres foram sistematicamente silenciadas, através de uma organização social e estatal que controlava seu comportamento e seus corpos. Apenas em 1827 as mulheres tiveram autorização para estudar em colégio regular, com acesso às mesmas matérias ensinadas aos meninos, e, em 1879, tiveram autorização estatal de cursar o ensino superior, porém ainda eram proibidas de trabalhar sem a anuência do marido”, relata a pesquisadora.
Após o Estatuto da Mulher Casada de 1962, foi eliminada a incapacidade civil da mulher (uma ficção criada pelo Estado) e lhe foi permitida liberdade de trabalhar, receber herança sem a necessidade da autorização do marido. “Mas permaneceu o marido como chefe da sociedade conjugal, sendo exclusivamente dele a decisão final sobre a residência da família e a religião dos filhos, por exemplo, o que perpetuava a submissão”, ressalta Dra. Fernanda.
Há 37 anos somente, com a chegada da Constituição de 1988, a mulher obteve legalmente igualdade de direito e condições ao homem também na família. “Mas isso não as libertou de seus algozes, pois em muitas casas, as mulheres continuaram a ser assassinadas por seus maridos, companheiros e namorados sob a justificativa de ‘legítima defesa da honra’, que somente em 2023 foi considerada inconstitucional em caso de feminicídio”, explica ela.
Estereótipos aumentam ‘guerra entre sexos’
Para Dra. Fernanda Las Casas, os mitos ancestrais da virilidade (de que os homens são naturalmente fortes, corajosos, violentos e viris) e da maternidade (de que as mulheres nasceram para maternar, e se apresentam como frágeis, dóceis, voluntariosas e indefesas) vêm formando padrões sociais (estereótipos) que estão levando a sociedade a um destino sem precedentes, com um número de feminicídios e de encarceramentos masculinos cada vez maiores.
“Como está comprovado, apenas aumentar a pena para casos de violência contra a mulher e feminicídio, compilar dados e elaborar projetos de lei, casas de apoio para vítimas de violência doméstica não são suficientes para eliminarmos esta guerra entre os sexos, é necessário buscar soluções através de novas perspectivas”, esclarece a advogada.
Soluções com foco na prevenção social e cultural
A pesquisa da Dra. Fernanda mostra que a solução abrange também uma reestruturação cultural que ataque a violência na base, desde a formação de meninos e meninas. A proposta dela foca na desconstrução dos estereótipos e na garantia de equidade e responsabilidade compartilhada no ambiente familiar:
– Criminalizar o abandono da gestante: caso não tenhamos um sistema que assegure à mulher que o pai será responsabilizado pela paternagem, as famílias monoparentais serão predominantemente lideradas por mulheres, pretas empobrecidas pelo descaso moral e social e submetidas a todo tipo de violência.
– Proibição de comerciais, filmes, novelas, séries com conteúdos misóginos e sexistas (apenado com multa): a mudança social se inicia através do controle de um comportamento social; para haver respeito à dignidade da mulher é necessário que o Estado atue para controlar situações e ações misóginas e sexistas que podem desencadear em violência.
– Substituição das licenças maternidade e paternidade pela “Licença Parental” com duração mínima de seis meses a um ano, com a possibilidade da paternagem e da maternagem simultaneamente, de forma que homens e mulheres tirem a licença se alternando no mesmo período, para que isso não afete a carreira diretamente as mulheres: com a mudança de conduta estabelecida, é apresentada à mulher uma nova oportunidade de maternar e ao empregador, garantindo a mulher estabilidade no trabalho e menor sobrecarga pela divisão da atividade de cuidado com a criança.
– Aumento no número de creches: para auxiliar mulheres a saírem de situações de violência, por terem onde deixar seus filhos em segurança e retornarem ao mercado de trabalho.
– Fiscalização obrigatória, com penas altas, para os empregadores que demitirem mulheres que tiverem filhos com idade até 5 anos: a medida é a curto prazo para mudar as estatísticas de desemprego de mulheres (49%) que são demitidas no 1º ano após o nascimento do primeiro filho.
– Indenização ao cônjuge que se dedicar à atividade de cuidado (mesmo que não seja de forma isolada) por ano de dedicação, com valor depositado em conta remunerada desde o início da atividade de cuidado, independente de ruptura conjugal ou não: esta mudança de comportamento vai gerar uma ruptura de paradigmas para que o cônjuge que se dedica ao lar seja valorizado.
– Tornar obrigatórias nas escolas de todo o país, por todo o período escolar desde a primeira infância até o Ensino Médio, aulas que visem a autonomia do indivíduo como culinária, costura, limpeza, troca de fraldas, e aulas de economia básica à avançada: uma mudança comportamental que a médio e longo prazo vai gerar uma geração de adultos funcionais e uma natural paternagem, rompendo de vez com os mitos do passado.
Dra. Fernanda explica que para obter os resultados esperados, como o desaparecimento da violência doméstica, é imprescindível começar as modificações imediatamente e reestruturar a cultura iniciando pelo ensino básico, alterar legislações misóginas, refazer os padrões estabelecidos em virtude de gêneros, para que as novas gerações compreendam que todos devem participar e são integralmente responsáveis pelo cuidado das formações familiares.
“Se a família é a base da sociedade, essa base não pode continuar recaindo exclusivamente sobre a mulher, sem a divisão de tarefas de cuidado e a riqueza também distribu
Por Fernanda Las Casas
Pesquisadora e advogada especializada em Direito de Família, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP)
Artigo de opinião



