Quando a realidade parece ficção: dá para ler o Brasil pela lente da “estratégia de desestabilização”?

Como choques sucessivos, desordem e disputas de narrativa podem criar o cenário perfeito para a instabilidade — e por que entender esse ciclo é essencial para reconhecer sinais de desestabilização em curso

Choque, caos, narrativa, crise. O arco dramático que conquistou o público na quinta temporada de Slow Horses — a série da Apple TV+ sobre o MI5 — virou assunto também por aqui: seria possível “enquadrar” o Brasil nessa lógica? A resposta curta: sim, na forma; não, na prova. Explicamos.

Nos últimos doze meses, o país conviveu com eventos de alto impacto capazes de reorganizar a agenda pública em poucas horas. O caso mais recente: a megaoperação policial no Rio de Janeiro, que terminou com 121 mortos, bloqueios de vias, suspensão de aulas e um rastro de medo e indignação — tudo isso acompanhado por um turbilhão de disputas políticas e narrativas nas redes e na imprensa. É o tipo de choque que, na ficção, inaugura a sequência de desestabilização. Na vida real, ele abre um flanco de oportunidade narrativa para múltiplos atores. AP News+1

A seguir vem o caos operacional: cidade travada, transporte interrompido, incerteza. No Rio, houve dezenas de ônibus usados como barricadas, com orientações de fechar principais vias — uma mostra de como a infraestrutura vira palco de disputa de poder quando o Estado e o crime organizado entram em confronto aberto. Agência Brasil

Nesse vácuo, vence quem conta a história primeiro. A etapa da narrativa — na série e aqui — é a batalha decisiva: definir “o que aconteceu”, “quem é vítima”, “quem é culpado”. E aí o Brasil exibe um traço conhecido pelos pesquisadores: polarização extrema e desinformação. Estudos apontam que a avalanche informacional, alimentada por plataformas e por atores organizados, erode a coesão social e fragiliza a confiança em instituições. Em cenários de choque, essa engrenagem acelera. IPEA+1

Quando a narrativa domina, instala-se a crise — não só a do evento em si, mas a crise de confiança. O eco de 8 de janeiro de 2023 — marco por onde se interpretam manifestações, processos e decisões — mostra como quadros simbólicos persistem e são reativados conforme a conveniência de cada lado. Na prática, isso mantém o país “em suspense” permanente, um ambiente fértil para novas ondas de mobilização, ruído e instabilidade. Wikipedia

Mas aqui entra o anticlímax necessário: não há evidência pública de um plano único, centralizado e sequenciado como o da ficção. O que se observa é multicausalidade: segurança pública, crime organizado, agendas eleitorais, decisões judiciais, comunicação política e interesses econômicos se sobrepõem. O resultado pode parecer uma operação coreografada, mas surge do aproveitamento oportunista de choques por múltiplos atores — cada qual com sua estratégia. IPEA

O que observar daqui para frente

  • Sincronia suspeita: choques seguidos de picos coordenados de mensagens com os mesmos frames, migrando de WhatsApp para X/Instagram e, então, para manchetes. Sinal vermelho para “campanhas-relâmpago” que moldam percepções antes de existirem fatos sólidos.

  • Infraestrutura como refém: transporte, escolas, serviços essenciais e dados públicos sob tensão em janelas políticas sensíveis. O caso dos ônibus no Rio virou estudo de caso.

  • Divisão instantânea: saltos bruscos em pesquisas de opinião após eventos extremos — um padrão observado nas reações à operação mais letal da história recente do país.

No fim, Slow Horses nos oferece um espelho estilizado. A forma — choque → caos → narrativa → crise — funciona para ler momentos brasileiros recentes. O conteúdo, porém, é mais desordenado e menos cinematográfico. E é justamente por isso que transparência de dados, investigação independente e alfabetização midiática importam: sem elas, a realidade fica refém do melhor roteirista em cena.

Fontes principais: Associated Press; Reuters; Agência Brasil; Ipea/Cepal; estudos acadêmicos sobre desinformação e o caso de 8/1 (Harvard Misinformation Review). Misinformation Review+7AP News+7Reuters+7

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