Desconstruindo Mitos Ancestrais: A Crise da Maternidade e os Desafios da Família Contemporânea
Como narrativas históricas equivocadas e desigualdades persistentes moldam a percepção sobre gênero, maternidade e o papel do Judiciário nas Varas de Família
Por que as conquistas legais e sociais das mulheres não foram suficientes para superar as desigualdades, e a maternidade passou a ser questionada diante da divisão desigual do trabalho de cuidado, da baixa valorização do trabalho doméstico e da persistência do abandono paterno?
Essas questões, frequentemente observadas nas Varas de Família, são o foco do livro “Família: mitos ancestrais e crises da maternidade”, fruto de uma pesquisa interdisciplinar que une Direito, Sociologia, Antropologia, História e Psicologia. A obra revela que a percepção da vulnerabilidade feminina não é um traço biológico inato, mas sim uma construção social, jurídica e cultural sustentada por narrativas históricas falhas e mitos ancestrais travestidos de verdades biológicas — assim como a ideia da natureza violenta masculina.
Com quase 25 anos de atuação em Direito de Família e Sucessões, a autora percebeu uma mudança significativa nas atitudes das novas gerações em relação ao casamento e à maternidade. Seus alunos e alunas expressaram desinteresse em seguir os modelos tradicionais, apontando para movimentos que refletem tensões de gênero, como o ódio masculino às mulheres e o afastamento feminino dos relacionamentos heterossexuais.
A pesquisa aprofundada revelou que muitos desses mitos são construções históricas e políticas. Por exemplo, a ideia do homem “sempre violento” e “sempre pronto para o sexo” foi um projeto estatal da Antiguidade, especialmente na Grécia, para justificar a guerra e a dominação masculina. Da mesma forma, a maternidade sacralizada como papel exclusivo da mulher gera sobrecarga e adoecimento, tanto individual quanto social.
Outro mito desmistificado é o da vulnerabilidade feminina como algo essencial e biológico. Na verdade, essa vulnerabilidade é contextual e passível de transformação por meio de avanços sociais e jurídicos. Além disso, o trabalho de cuidado não remunerado, tradicionalmente atribuído às mulheres, resulta em perdas financeiras significativas após o divórcio, o que reforça a necessidade de repensar a indenização por essas atividades.
A obra também destaca um alerta demográfico e econômico: a crise da maternidade tem impactos profundos na sociedade. Cerca de 50% das mulheres são demitidas ao terem o primeiro filho, evidenciando o custo profissional da maternidade. Projeções indicam que o Brasil pode enfrentar uma crise demográfica até 2041, quando o número de mortes superará o de nascimentos, cenário que já preocupa países como Japão, China e Índia. Essa baixa natalidade ameaça o equilíbrio da Previdência Social e a sustentabilidade econômica.
A decisão da nova geração de adiar ou mesmo evitar a maternidade é compreendida como uma resposta às muitas renúncias exigidas, à desigualdade na divisão do trabalho doméstico e ao abandono paterno persistente.
O livro propõe que as bases da sociedade, forjadas em divisões de trabalho baseadas em papéis de gênero sustentados por mitos e histórias inventadas, precisam ser revistas. O acesso à realidade, fundamentada em dados e evidências, pode abrir caminho para reverter a baixa natalidade, reduzir a violência contra a mulher e diminuir índices alarmantes como o suicídio masculino. Mudanças simples e econômicas em políticas públicas são apontadas como essenciais para evitar uma crise econômica e previdenciária iminente.
Em suma, a desconstrução desses mitos ancestrais não é apenas um exercício acadêmico, mas uma urgência social que pode transformar a forma como entendemos família, gênero e justiça, promovendo uma sociedade mais justa e equilibrada.
Por Fernanda Las Casas
advogada, professora universitária, Doutora em Direito Civil pela USP
Artigo de opinião



