O Caso Andrei Goulart e a Necessidade Urgente de uma Escuta Social Qualificada sobre Violência e Luto

Como a Psicologia Forense pode transformar o sofrimento coletivo em resistência e justiça restaurativa emocional

O Brasil, país marcado por índices alarmantes de violência, frequentemente se depara com tragédias que extrapolam o âmbito individual e se transformam em símbolos de um sofrimento coletivo. O caso de Andrei Goulart, que volta ao centro do debate público com a realização do júri popular em 27 de outubro, é um desses marcos. Mais de uma década após o crime, a família ainda busca justiça, enquanto a sociedade assiste, muitas vezes anestesiada, à repetição de histórias semelhantes. A tragédia que vitimou Andrei, um menino de 12 anos, expõe a dimensão humana de crimes que, além de devastadores, reverberam na memória social.

A violência que marcou o caso vai além do ato em si. Em 2020, quatro anos após o ocorrido, houve uma reviravolta: a promotora responsável pela denúncia concluiu que o menino não havia se suicidado, como indicava o inquérito policial, mas que fora vítima de um familiar que manipulou a cena do crime para simular o suicídio. A mãe de Andrei, Cátia Goulart, tornou-se símbolo de resistência, mostrando que a persistência na busca por verdade e justiça pode ser transformada em narrativa, resistência e luta por reconhecimento, evidenciando também o peso emocional que recai sobre famílias que enfrentam a violência e a burocracia do sistema judicial.

Esse público, além de ser vítima de violência letal, também sofre com violências não letais, como psicológica, física e sexual, além de negligência e abandono. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, mostram um crescimento de 36,2% nas notificações dessas quatro formas de violência entre 2022 e 2023, com um recorde de 115.384 atendimentos de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos no último ano analisado. Diante desse cenário, é imprescindível que a psicologia assuma um papel ativo, não apenas como ciência do comportamento, mas como agente de transformação social.

O sofrimento das vítimas indiretas, como familiares, amigos e comunidades inteiras, não pode ser relegado ao silêncio. É preciso escutar, compreender e agir. Quando a violência não é devidamente elaborada, ela se perpetua como um trauma social. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que a exposição repetida a tragédias gera sintomas de estresse pós-traumático coletivo, afetando a percepção de segurança, confiança e vínculo comunitário. Cada crime que ganha notoriedade é, em outras palavras, uma ferida aberta no tecido social — e, como tal, exige reparação.

No entanto, o sistema de justiça tradicional, com sua lógica punitivista e burocrática, raramente oferece espaço para a escuta qualificada do sofrimento. O foco costuma recair sobre o julgamento do réu, enquanto as vítimas indiretas permanecem à margem, muitas vezes revitimizadas por processos que desconsideram sua dor. É nesse contexto que a Psicologia Forense propõe uma alternativa: a justiça restaurativa emocional. O processo de escuta das vítimas e familiares é essencial não apenas para o acesso à justiça, mas também para evitar a revitimização e promover a reparação simbólica. Trata-se de reconhecer que a violência deixa marcas invisíveis — e essas também exigem cuidado.

A escuta qualificada, nesse sentido, não é um mero procedimento técnico. É um ato político. É a escolha de dar voz ao sofrimento, de reconhecer a legitimidade da dor e de construir narrativas que resistam ao esquecimento. Quando a mãe de Andrei transforma sua dor em movimento e se torna uma voz de coragem, ela não está apenas lutando por justiça individual, mas reivindicando o direito de ser ouvida, de ser reconhecida e de transformar o luto em resistência. A Psicologia, portanto, não pode se calar diante dessas tragédias.

É preciso que os profissionais da área se posicionem entre a justiça e a empatia, entre o rigor técnico e a sensibilidade ética. A escuta social qualificada deve ser entendida como um compromisso com a memória, com a dignidade e com a possibilidade de reconstrução. Não se trata de substituir o sistema de justiça, mas de complementá-lo — oferecendo um espaço de acolhimento e elaboração que o processo judicial, por si só, não é capaz de proporcionar. A sociedade brasileira precisa aprender a escutar antes de julgar, a compreender antes de condenar.

Ao transformar o sofrimento em narrativa, resistência e luta por reconhecimento, contribuímos para a construção de uma justiça que vai além da punição, uma justiça que repara, acolhe e humaniza. O caso Andrei Goulart é um chamado à responsabilidade coletiva. Não podemos permitir que o sofrimento se torne apenas mais um dado estatístico. É preciso escutar, reconhecer e agir. A psicologia, com sua capacidade de compreender a complexidade humana, deve estar na linha de frente dessa transformação, porque, em última instância, a justiça verdadeira só é possível quando se escuta o que a dor tem a dizer.

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Por Aline Victor Lima

Psicóloga clínica, coordenadora do Núcleo de Psicologia Forense da BRAPSI, pós-graduanda em Psicologia Forense pela Faculdade Volpe Miele, pesquisadora acadêmica, com experiência clínica e passagem pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Artigo de opinião

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