De tradição a negócio: O duplo impacto da comercialização das festas populares

Editorial Afina Menina

As festas populares brasileiras, outrora simples expressões de cultura e fé, transformaram-se em eventos de grande impacto econômico, movimentando milhões de reais e gerando renda para uma vasta cadeia de trabalhadores. Esta evolução, porém, não é isenta de contradições. Enquanto a economia se aquece e oportunidades surgem, setores da sociedade questionam até que ponto o sentido original das comemorações está sendo preservado ou deturpado em prol do lucro.

O Despertar Econômico das Tradições

As festas populares tornaram-se poderosos motores econômicos, aquecendo o comércio, o turismo e os serviços. Os números ilustram a magnitude deste fenómeno:

  • Carnaval: Estima-se que a festa movimente R$ 12 bilhões em 2025, com destaque para bares e restaurantes (R$ 5,4 bilhões), transporte de passageiros (R$ 3,31 bilhões) e hospedagem (R$ 1,28 bilhão). Milhões de pessoas participam das festividades, impulsionando setores diversos e gerando empregos formais e informais.
  • Festas Juninas: As comemorações por Santo Antônio, São João e São Pedro podem movimentar até R$ 7,4 bilhões em um único mês. Esse valor circula principalmente nas regiões Norte e Nordeste, com forte impacto em segmentos como alimentação, vestuário típico, artesanato e turismo.
  • Festival de Parintins: Eventos de menor escala, mas de profundo significado cultural, também ganham relevância na atração de turistas. A estratégia de promoção internacional da Embratur revela que, apesar de pouco conhecidos no exterior, estes festejos são considerados únicos, sem concorrência direta, representando uma “oportunidade de ouro” para o turismo nacional.

Geração de Renda: Do Ambulante ao Pequeno Empresário

O crescimento desses eventos abriu um leque de oportunidades para geração de renda, tornando-se uma tábua de salvação económica para muitos.

  • Pequenos Comércios e Economia Criativa: A cadeia produtiva é extensa, englobando turismo, alimentos, costura e economia criativa. Na 25 de Março, em São Paulo, o comércio de fantasias e adereços fervilha. Artesãos encontram nos traços típicos, como as roupas de algodão para São João, uma fonte de sustento.
  • Oportunidades Inovadoras e Sustentáveis: A criatividade floresce, gerando modelos de negócio inusitados. Jovens como William, de 27 anos, identificam nichos como a venda de fotos Polaroid em blocos de Carnaval, aproveitando o receio das pessoas de levar smartphones. Iniciativas de sustentabilidade também ganham espaço, como a da Roça Reciclando, que gera renda para cooperativas de catadores durante a folia, mostrando como a criatividade pode ser aliada à responsabilidade ambiental.
  • Sustento para Trabalhadores Informais: Para muitos, o período das festas funciona como uma renda extra essencial. Mônica, vendedora ambulante de bebidas, relata que o Carnaval é uma “segurança” para garantir uma renda enquanto espera por outros eventos ao longo do ano. O assessor econômico da Fecomércio São Paulo, Guilherme Dietze, corrobora que parte significativa da renda é destinada a comerciantes ambulantes, que usam o dinheiro para necessidades básicas e quitação de dívidas.

A Encruzilhada Cultural: Entre a Valorização e a Deturpação

O sucesso econômico, no entanto, coloca as festas populares numa encruzilhada cultural. Existe um risco palpável de que a busca pelo lucro descaracterize as tradições que lhes deram origem.

A Perda do Sentido Original

Muitas festas possuem raízes profundas na religiosidade e na celebração de colheitas. As festas juninas, por exemplo, antes de assumirem o caráter religioso, eram festas pagãs que homenageavam os deuses da natureza e da fertilidade, agradecendo o sucesso das colheitas — daí a centralidade do milho na culinária. A Folia de Reis celebra a jornada dos Reis Magos, e o Círio de Nazaré é uma das maiores e mais emocionantes procissões religiosas do país. A massificação e a comercialização podem esvaziar esse conteúdo simbólico, transformando rituais sagrados em meros produtos de consumo para turistas.

O “Efeito Colateral” da Exploração Comercial

O termo “efeito colateral” usado aqui é bastante preciso. A deturpação ocorre quando o foco deixa de ser a celebração comunitária e passa a ser exclusivamente o retorno financeiro. A professora de Economia da PUC-SP, Cristina de Mello, aponta que há uma resistência natural à transformação em manifestações culturais, e o desafio é equilibrar as experiências modernas com as tradições mais autênticas. Quando as festas são moldadas prioritariamente para agradar a um público externo, elementos culturais podem ser simplificados, estereotipados ou até mesmo inventados, perdendo sua conexão com a comunidade local.

Um Olhar Para o Futuro: É Possível Equilibrar as Duas Esferas?

O caminho para o futuro parece residir na busca por um modelo sustentável que não oponha economia e cultura, mas que as harmonize.

A própria Embratur, ao promover o Brasil no exterior, já não vende apenas o sol e praia, mas procura colocar a cultura no centro, valorizando a autenticidade e a diversidade. Monica Eliza Samia, gerente da Embratur, explica: “O turista estrangeiro não vem mais ao Brasil para fazer uma viagem panorâmica. Ele quer mergulhar naquela cultura… quer participar. Quando a gente fala de experiência turística, é no sentido de trazer esse visitante para vivenciar a nossa cultura e a nossa natureza não como um espectador, mas como um ator”.

Este “mergulho” só é possível se as festas preservarem sua alma. Cabe aos gestores públicos, aos empreendedores e às próprias comunidades:

  • Valorizar os Mestres e Guardiões da Cultura: Dar voz e espaço aos detentores tradicionais do conhecimento, garantindo que suas narrativas e práticas sejam respeitadas.
  • Investir em Capacitação: Preparar os destinos para receber bem os turistas sem descaracterizar o local, como a própria Embratur já sinaliza que está fazendo.
  • Promover o Turismo de Experiência Autêntico: Incentivar visitas que permitam uma troca genuína com a comunidade, como as “fam tours” (viagens de familiarização) que levam operadores estrangeiros para vivenciar as festas in loco.

Em última análise, a chave está em entender que o valor econômico das festas populares é derivado do seu inestimável valor cultural. Quando a cultura é tratada como mera commodity, o negócio pode florescer no curto prazo, mas a essência que atrai turistas e move economias se esvai. Preservar o sentido das comemorações não é um obstáculo ao progresso econômico; é, sim, a sua condição mais fundamental para que continue a movimentar não só o dinheiro, mas também o coração do povo.

 

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