O que o “Resting Bitch Face” revela sobre julgamentos culturais e de gênero
Como a interpretação de expressões neutras expõe preconceitos sociais e desafia padrões impostos, especialmente às mulheres
O fenômeno conhecido como Resting Bitch Face (RBF), expressão popularizada na internet para se referir a rostos neutros que parecem transmitir irritação, desdém ou antipatia mesmo sem essa intenção, tem sido alvo de piadas e memes. No entanto, a ciência revela que ele é muito mais complexo do que aparenta. Segundo pesquisa conduzida por Abbe Macbeth e Jason Rogers em 2015, utilizando o sistema FaceReader da Noldus Information Technology, expressões faciais neutras de celebridades como Kristen Stewart e Anna Kendrick exibiam microexpressões de desprezo em até 6% do tempo, enquanto rostos verdadeiramente neutros registram apenas 3% de expressividade emocional. Isso mostra que nossa interpretação de expressões neutras muitas vezes está carregada de vieses culturais e sexistas, e não corresponde à realidade da face em repouso.
A percepção negativa do RBF é particularmente direcionada às mulheres. De acordo com Macbeth, existe uma pressão social para que o gênero feminino demonstre constantemente receptividade e felicidade, transformando o sorriso em uma expectativa normativa. Essa discrepância não tem base biológica, mas reforça estereótipos prejudiciais. Um estudo da Ohio State University confirmou que movimentos faciais associados ao RBF, como sobrancelhas franzidas, queixo elevado e lábios comprimidos, são reconhecidos de forma universal, inclusive em diferentes idiomas e na linguagem de sinais, o que evidencia a interpretação global do desprezo, ainda que involuntário.
Apesar do estigma, há benefícios sutis na expressão neutra percebida como negativa. Mulheres que apresentam RBF frequentemente relatam desenvolver maior sensibilidade à comunicação verbal e habilidades estratégicas em ambientes sociais e profissionais. A atenção ao conteúdo da fala, em vez da expressão facial, favorece a empatia cognitiva e a resiliência emocional, transformando o que é visto como falha em diferencial de atuação. Estudos de psicologia social indicam que a percepção de poder e assertividade em homens com expressões neutras também reforça a necessidade de repensar julgamentos automáticos baseados apenas na aparência.
É possível argumentar que a padronização de expressões neutras ajudaria na comunicação interpessoal, mas essa perspectiva ignora a complexidade das interações humanas. O problema não reside no rosto em repouso, mas na interpretação enviesada que a sociedade impõe. A insistência em associar caráter à expressão facial ignora evidências científicas sobre microexpressões e promove discriminação silenciosa, especialmente no ambiente corporativo e social.
Portanto, reconhecer o RBF como uma característica natural e não uma falha é um passo essencial para reduzir estigmas. O debate deve migrar do ajuste forçado de rostos para uma reflexão sobre como percebemos os outros e os julgamentos automáticos que perpetuamos. A ciência já mostrou que rostos neutros podem apresentar sinais sutis de desprezo, mas é a interpretação cultural que transforma esses sinais em preconceito.
A sociedade precisa aprender a separar aparência de intenção. Em vez de pressionar indivíduos a “corrigir” suas expressões, o caminho é questionar o olhar crítico que atribui caráter à face em repouso. Aceitar que a neutralidade facial não é sinônimo de hostilidade abre espaço para interações mais justas, conscientes e livres de estigmas, promovendo respeito e empatia no cotidiano.
Por Dra. Tainah de Almeida
médica dermatologista especialista em rejuvenescimento; graduação em Medicina pela Universidade Católica de Brasília (UCB); Residência Médica em Dermatologia no HRAN – SES/DF; Pós-graduação em Dermatologia Oncológica no Hospital Sírio Libanês; título de especialista em Dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD); Fellowship em Dermatoscopia e Oncologia Cutânea na Skin Cancer Unit do Arcispedale Santa Maria Nuova, Itália; capacitação na unidade de Melanoma e Lesões Pigmentadas do Hospital Clínic da Universidade de Barcelona, Espanha
Artigo de opinião