O contrassenso dos acordos que “compram” liberdade no Brasil
Quando bilhões são desviados e cem milhões bastam para livrar executivos de um processo penal, o problema deixa de ser jurídico e se torna social
A homologação dos Acordos de Não Persecução Penal (ANPP) dos sócios da Fast Shop, Milton Kazuyuki Kakumoto e Júlio Atsushi Kakumoto, e do diretor Mario Otávio Gomes, trouxe à tona uma das contradições mais evidentes da justiça brasileira: a ideia de que se pode transformar crimes bilionários em multas parceladas e um aperto de mão formalizado pelo Ministério Público.
O que está em jogo
O caso envolve um esquema de corrupção tributária estimado em R$ 1,5 bilhão, com créditos de ICMS inflados e viabilizados pelo auditor da Sefaz-SP, Artur Gomes da Silva Neto. Em contrapartida, os executivos pagarão R$ 100 milhões em 15 parcelas — um valor que, proporcionalmente, equivale a devolver centavos de um furto.
Mais do que a matemática, é o efeito simbólico que escancara o abismo social. Para a elite empresarial, a lei oferece atalhos: programas de compliance, promessas de boas práticas e multas negociáveis. Para o trabalhador comum, muitas vezes, sequer furtar uma barra de chocolate dá direito a um acordo.
O papel do ANPP
O Acordo de Não Persecução Penal foi criado em 2019, com a Lei Anticrime, para desafogar o Judiciário e permitir resoluções rápidas de casos de menor potencial ofensivo — corrupção tributária bilionária definitivamente não era o cenário imaginado pelos legisladores.
Na prática, o instituto vem sendo usado como válvula de escape para crimes de colarinho branco. Basta assumir a culpa, pagar uma fração do montante e adotar medidas corporativas de “governança” para que a ficha criminal seja poupada.
O abismo de classes
Esse tipo de acordo reforça a percepção de que o sistema de justiça é seletivo. A frase “rouba mas paga e fica solto” vira norma quando aplicada a grandes empresários. Já nas periferias, jovens seguem presos preventivamente por meses ou anos por furtos de valores irrisórios.
Não se trata apenas de impunidade, mas de corrosão da confiança social. A classe média trabalhadora vê que cumprir regras é mais caro do que ter acesso a bons advogados. E a sensação de injustiça alimenta tensões políticas e sociais.
Entre o legal e o legítimo
Se do ponto de vista técnico-jurídico o ANPP é válido, do ponto de vista social ele soa como um deboche institucionalizado. Afinal, qual mensagem passa um país onde o desvio de um bilhão pode ser resolvido com uma multa de cem milhões?
O Brasil vive uma encruzilhada: manter a lógica de acordos que garantem a paz dos tribunais, mas aprofundam a revolta social; ou reavaliar os limites legais do ANPP, para que a lei de persecução penal não seja apenas um álibi jurídico de luxo.
Reflexão para o leitor: se você tivesse uma dívida fiscal de R$ 10 mil, o Estado faria acordo para você pagar só R$ 700 e seguir em frente?