Triplo homicídio em Ilhéus revela lacunas na prevenção do feminicídio no Brasil

A análise do caso expõe padrões de violência e a urgência de políticas públicas integradas para combater o ciclo letal contra mulheres

O assassinato de três mulheres em Ilhéus, na Bahia, ocorrido em 16 de agosto de 2025, durante o “Agosto Lilás”, expôs mais uma vez a gravidade da violência de gênero no Brasil. Maria Helena do Nascimento Bastos, de 41 anos, sua filha Mariana Bastos da Silva, de 20, e a amiga Alexsandra Oliveira Suzart, de 45, foram encontradas em um matagal com ferimentos provocados por arma branca. O caso, de grande repercussão nacional, traz à tona o impacto social do feminicídio e também levanta questões cruciais para a análise criminológica e psicológica do comportamento dos agressores.

A utilização de facas ou objetos perfurocortantes em crimes contra mulheres é um elemento recorrente em pesquisas de psicologia forense. Estudos da tese de doutorado intitulada “Fatores de risco para feminicídios na cidade de Campinas, revisão da literatura, estudo caso-controle espacial e análise qualitativa” do programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp indicam que 37% dos feminicídios no Brasil são cometidos com esse tipo de arma, muitas vezes acompanhados de excesso de golpes ou tortura.

A escolha desse instrumento exige proximidade física, o que geralmente relaciona o crime a motivações passionais, ódio intenso ou desejo de vingança. Em Ilhéus, a brutalidade dos ferimentos sugere um componente emocional forte, mais do que uma simples ação racional. Esse tipo de violência costuma refletir fúria e excesso, indicando descarga de sentimentos reprimidos. Assim, não pode ser dissociada de um possível vínculo prévio entre autor e vítimas.

O contexto em que o crime ocorreu também merece atenção. O fato de as vítimas estarem em grupo levanta a hipótese de que uma delas poderia ser o alvo principal, enquanto as demais foram mortas como testemunhas ou em tentativa de defesa. Esse padrão reforça o caráter relacional do crime e indica que a dinâmica pode estar ligada a conflitos pessoais, embora não se possa descartar outras motivações, como retaliação ou violência de caráter sexual.

Outro aspecto relevante diz respeito ao perfil dos feminicidas, em que, diferentemente do imaginário popular, a maioria não possui histórico formal de transtornos mentais graves. São indivíduos socialmente integrados, muitas vezes descritos como “bons vizinhos” ou colegas de trabalho comuns. Fatores como comportamento controlador, ciúme possessivo e abuso de álcool aparecem com maior frequência como antecedentes, sendo este último relacionado a cerca de um terço dos casos de violência letal contra mulheres.

O local de abandono dos corpos em Ilhéus sugere, ainda, um possível planejamento. Crimes ocorridos em matagal ou áreas isoladas costumam indicar tentativa de ocultação, diferente dos homicídios passionais cometidos dentro do ambiente doméstico. Esse deslocamento pode apontar para maior organização do agressor e abre espaço para hipóteses mais complexas, como envolvimento em disputas pessoais prolongadas ou até conexões com práticas criminosas mais amplas.

Em 2023, mais de 177 mil mulheres foram atendidas no Brasil em decorrência de violência doméstica, e o Atlas da Violência registra que, em média, dez mulheres são assassinadas por dia no país, sendo a maioria negra e periférica. A violência letal é, na maior parte dos casos, a culminância de um ciclo de agressões prévias, o que evidencia falhas nos mecanismos de proteção e prevenção.

Além da dinâmica do crime, a conduta pós-homicídio do agressor é considerada um fator-chave para a compreensão de seu perfil. Ainda segundo estudos da tese de doutorado “Fatores de risco para feminicídios na cidade de Campinas, revisão da literatura, estudo caso-controle espacial e análise qualitativa”, em 54% dos casos, os autores fogem, enquanto em 12% se entregam à polícia. No episódio de Ilhéus, ainda não foram divulgadas informações sobre esse comportamento, mas esses dados podem se tornar determinantes para entender o grau de impulsividade ou de planejamento envolvido.

O triplo homicídio de Ilhéus, além de refletir padrões já observados em feminicídios no país, ressalta a necessidade de análises integradas entre criminologia, psicologia e políticas públicas. Sem compreender as motivações, os perfis e os contextos que cercam esse tipo de violência, as respostas sociais tendem a se limitar à indignação imediata. O desafio está em transformar a comoção em medidas preventivas mais eficazes, capazes de atuar antes que o ciclo da violência alcance sua forma mais extrema.

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Por Aline Victor Lima

Psicóloga clínica, coordenadora do Núcleo de Psicologia Forense da BRAPSI, pós-graduanda em Psicologia Forense pela Faculdade Volpe Miele, pesquisadora acadêmica, com experiência clínica e passagem pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Artigo de opinião

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