Violência Sexual Infantil no Brasil: Quebrando o Silêncio Sobre o Abuso Intrafamiliar
Mais de 60% dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa, revelando a urgência de repensar a ideia da “família ideal” e fortalecer redes de proteção.
O número de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil chegou a 78.537 em um ano, o que equivale a 215 notificações diárias. Dados da Fundação Abrinq indicam que a região sudeste concentra mais de 25 mil desses casos, seguida pela região sul, com mais de 10 mil denúncias. Entre as vítimas, quase 75% têm até 19 anos, e o gênero feminino representa mais de 50 mil casos. O dado mais alarmante é que mais de 60% dos abusos acontecem dentro do ambiente familiar.
Esse cenário revela a necessidade urgente de romper o mito da “família ideal”, pois nem sempre o lar é um espaço acolhedor e seguro. O abuso praticado por figuras parentais ou cuidadoras gera traumas profundos e complexos, difíceis de superar, pois envolvem laços familiares que deveriam proteger a criança. Quando a violência parte justamente de quem deveria cuidar, a criança sofre uma ruptura na percepção de segurança e confiança no mundo, deixando marcas invisíveis que se manifestam ao longo da vida, afetando relações afetivas, autoestima e saúde mental.
É fundamental compreender que o rompimento do vínculo com o familiar abusivo é legítimo e necessário para preservar a vida e a saúde psíquica da vítima. A crença cultural de que laços de sangue são indissolúveis precisa ser revista, pois quando esses laços causam dor e medo, a separação se torna uma medida protetiva essencial. Parentalidade não é garantida apenas pela biologia; ser pai ou mãe implica oferecer cuidado, afeto e proteção. Quando esses pilares são quebrados, a relação familiar se torna adoecida e, em casos extremos, devastadora.
O medo, a vergonha e a dependência emocional ou financeira muitas vezes impedem que a vítima rompa o ciclo de abuso mais cedo. A sociedade precisa entender a complexidade dessas relações e oferecer redes de apoio qualificadas para que as vítimas possam denunciar e se afastar de seus agressores com segurança. A exposição pública da violência sofrida, como no caso recente de Heloísa, demonstra a força de quem consegue romper esse ciclo, apesar dos desafios emocionais envolvidos.
Romper com um familiar abusivo envolve não apenas uma decisão prática, mas também a reconstrução de uma identidade emocional violada. Por isso, é urgente ampliar políticas públicas e campanhas de conscientização sobre a violência intrafamiliar, para prevenir casos e garantir que as vítimas recebam a devida atenção das autoridades e da sociedade. É necessário desidealizar as relações familiares e colocar o bem-estar da criança como prioridade, mesmo que isso implique o afastamento de quem biologicamente lhe deu a vida.
Por Bruna Côrtes
Psicóloga formada pela PUC do Rio, Diretora Técnica e Psicóloga Clínica na Norte Saúde Mental, especialista em Psicotrauma e Terapia Sistêmica, professora e supervisora de terapeutas em formação, palestrante e facilitadora de vivências psicológicas coletivas
Artigo de opinião