O Impacto das Redes Sociais e das Tragédias Digitais na Saúde Mental Contemporânea

Trauma vicário, fadiga por compaixão e luto digital: como a hiperexposição ao sofrimento nas redes afeta nosso equilíbrio emocional

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Vivemos um tempo em que as tragédias não precisam mais acontecer perto para nos afetar profundamente. Os conflitos armados, antes restritos às manchetes dos jornais, agora se infiltram no cotidiano digital, entre um stories e outro, em vídeos que surgem sem aviso no feed, nos grupos de WhatsApp ou nas plataformas de entretenimento. A dor do outro, cada vez mais exposta e amplificada pelas redes, se torna também nossa, ainda que à distância. E o que antes era visto como sensibilidade extrema hoje é reconhecido pela psicologia como um fenômeno real, o chamado trauma vicário.

Desde 2020, a pandemia da COVID-19 inaugurou um ciclo prolongado de exposição à morte em tempo real, transformando o luto coletivo em uma experiência global reconhecida pela OMS. Em 2022, a Guerra da Ucrânia marcou uma nova etapa dessa dinâmica, com cenas de bombardeios viralizando no TikTok e X. Mais recentemente, a guerra Israel-Palestina e os conflitos no Sudão contribuíram para ampliar ainda mais essa onda de sofrimento digitalizado, que afeta emocionalmente milhões de pessoas ao redor do mundo, inclusive no Brasil.

A exposição constante a cenas de violência, sofrimento e morte, mesmo quando não vividas diretamente, pode desencadear reações emocionais comparáveis às de quem esteve no centro da tragédia. Ansiedade persistente, insônia, exaustão, sensação de impotência e até sintomas de transtorno de estresse pós-traumático vêm sendo observados com frequência crescente entre pessoas que acompanham, de forma recorrente, os horrores das guerras, dos desastres naturais e dos crimes brutais exibidos em looping nas telas.

Esse não é um processo exclusivo de quem tem relação com o fato noticiado. O que se observa é uma forma de empatia intensificada e desprotegida, que ativa no cérebro os mesmos circuitos de dor e compaixão de quem sofre presencialmente. O consumo emocional de tragédias se transforma, muitas vezes, em fadiga por compaixão: uma exaustão silenciosa provocada pelo excesso de contato com o sofrimento alheio. A American Psychological Association já reconhece a condição, e estudos internacionais demonstram que indivíduos expostos repetidamente a conteúdos traumáticos pela mídia apresentam níveis de estresse semelhantes aos vivenciados por testemunhas diretas.

A morte da brasileira Juliana Marins, em junho de 2025, durante uma trilha na Indonésia, expôs com clareza esse tipo de sofrimento coletivo digital. Milhares de pessoas passaram dias acompanhando a busca pelo seu paradeiro, se envolvendo emocionalmente com a história, vibrando por atualizações e, por fim, lamentando um desfecho trágico. Pessoas que nunca a conheceram passaram a vivenciar um luto real, ainda que virtual, em um fenômeno conhecido como “luto digital”. A conexão criada entre a vítima e o público, mediada por redes sociais e narrativas emocionais, transformou a dor individual em uma experiência compartilhada.

Ao mesmo tempo que as plataformas digitais facilitam o acesso à informação, criam uma espécie de “loop de tragédias” que nos prende em uma espiral de alerta emocional. O algoritmo, programado para priorizar o que engaja, tende a destacar o que choca, e esse filtro invisível intensifica o contato com imagens violentas, relatos emocionantes e cenas de sofrimento extremo. A rolagem compulsiva de conteúdos negativos, fenômeno conhecido como doomscrolling, se torna um hábito inconsciente, com efeitos diretos sobre o humor, a percepção de mundo e a saúde mental.

Desconectar-se, por outro lado, nem sempre é fácil, pois há uma culpa difusa, alimentada por uma ideia equivocada de que afastar-se das notícias seria uma forma de indiferença, mas proteger-se emocionalmente não significa ignorar a dor do outro. Estabelecer filtros, definir horários curtos para se informar, buscar conteúdos equilibrados e cuidar da própria estabilidade psíquica são medidas tão válidas quanto o engajamento com causas humanitárias. O autocuidado, nesse caso, não é um gesto egoísta, mas uma forma de empatia ativa e sustentável.

As consequências dessa exposição emocional prolongada já começam a aparecer nos dados, com o Brasil sendo um dos países com maior prevalência de transtornos de ansiedade no mundo, segundo a OMS. O uso excessivo de redes sociais, estimado em mais de 3 horas diárias por pessoa, está associado ao aumento de sintomas depressivos, especialmente entre os jovens. O Sistema Único de Saúde registra elevação na demanda por atendimento psicológico desde a pandemia, e os centros especializados relatam sobrecarga constante.

Esse adoecimento emocional coletivo precisa ser reconhecido como parte do nosso tempo. O que antes era considerado um efeito colateral da empatia, hoje se configura como risco direto à saúde mental. Não basta apenas pedir “menos redes” ou “mais leveza”, é preciso pensar estratégias públicas, educacionais e tecnológicas para lidar com a nova realidade emocional moldada pelas telas. Os psicólogos têm papel essencial nesse processo, não apenas no atendimento individual, mas também na mediação social, na orientação pública e na criação de uma linguagem acessível para falar de dor e autocuidado com responsabilidade.

A sensibilidade não pode ser criminalizada. Sentir dor pela tragédia alheia é, antes de tudo, um traço de humanidade, mas permitir-se respirar, pausar e cuidar da própria saúde emocional é, hoje, uma necessidade coletiva. Desconectar-se de tempos em tempos, redefinir limites e buscar suporte não são sinais de fraqueza, são expressões de sabedoria emocional em um mundo que nos expõe ao sofrimento alheio como nunca antes. É possível cuidar do outro e de si ao mesmo tempo, basta que se reconheça que também temos o direito de se proteger para continuar sendo ponte, e não esponja, diante da dor do mundo.

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Por Isabella Della Giacoma Bettes

Psicóloga associada da BRAPSI; formação em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e em Direito pela Uninter; atua em temas relacionados à saúde mental coletiva, comportamento social e fenômenos contemporâneos como trauma vicário, luto digital e fadiga por compaixão.

Artigo de opinião

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