Feminicídio no Brasil: uma crise simbólica que vai além da violência
Psicanalista analisa o fenômeno como sintoma social e alerta para a urgência de políticas públicas que enfrentem o colapso nas relações de gênero
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O Brasil registrou 1.450 feminicídios em 2024, o maior número desde a tipificação do crime em 2015. Isso significa que uma mulher foi assassinada a cada 6 horas, geralmente por companheiros ou ex-companheiros. No Rio Grande do Sul, os números são ainda mais alarmantes: apenas no feriado da Páscoa deste ano, 10 mulheres foram mortas em 9 cidades diferentes. Esses dados, no entanto, revelam mais do que uma epidemia de violência — expõem uma crise simbólica profunda nas relações entre os gêneros.
Uma ferida coletiva
Para a psicanalista Camila Camaratta, o feminicídio não é apenas um crime passional ou de ódio, mas um sintoma social que denuncia o desamparo psíquico de uma sociedade que não consegue lidar com a autonomia feminina. “Quando a capacidade de simbolizar falha, o sujeito age para destruir aquilo que não consegue elaborar. O feminicídio é a passagem ao ato de uma subjetividade em ruínas”, explica.
Segundo a especialista, a violência surge quando estruturas simbólicas — como família, escola e cultura — não oferecem contornos para lidar com frustrações e perdas. “A destrutividade é parte do que nos constitui humanos. O que nos civiliza é a capacidade de transformar impulsos em diálogo. Sem isso, sobra o ato bruto”, afirma.
Masculinidade tóxica e o vazio simbólico
Dados da ONU Mulheres mostram que, em 2022, cerca de 60% dos assassinatos de mulheres no mundo foram cometidos por parceiros ou familiares. Camaratta relaciona isso a normas patriarcais enraizadas, ciúme patológico e uma cultura que ainda vê a mulher como propriedade. “Muitos homens encaram a autonomia feminina como afronta. Quando não suportam a ideia de que o outro existe sem ser seu, agem para eliminar a ‘ameaça'”, analisa.
A psicanalista também destaca a influência de comunidades online misóginas, como incels e redpill, que reforçam discursos de posse e controle. “Esses grupos alimentam a ideia de que a mulher deve obedecer, negando-lhe o direito à liberdade”, alerta.
Para além da punição: a urgência de políticas de escuta
Embora medidas legislativas sejam essenciais, Camaratta defende que a solução exige mais do que punição. “Precisamos criar espaços de escuta e ressignificação simbólica. O feminicídio carrega uma mensagem: é preciso reconstruir novas narrativas para a masculinidade e o convívio entre gêneros”, conclui.
Enquanto o Brasil não enfrentar essa crise estrutural, os números continuarão a refletir uma sociedade que mata suas mulheres — e, com elas, a possibilidade de um futuro menos violento.
*Camila Camaratta é psicanalista e membro da Federação Latino-Americana de Psicanálise. Para saber mais, acesse www.camilacamaratta.com.br.*