Princípio do Estado de Necessidade exclui culpa por abandono de animais de tutores vítimas das chuvas da região Sul
Juliana Virginelli*
As fortes chuvas que atingiram a região sul do país na última semana, em particular o Rio Grande do Sul, deixaram estatísticas alarmantes. Dezenas de vidas perdidas, casas, comércio e estradas completamente destruídos, pessoas isoladas na espera de resgate até hoje. O impacto total ainda está longe de ser calculado.
Dentre as estatísticas mais alarmantes está o número de animais resgatados e mortos em razão das enchentes. De acordo com a rede CNN Brasil, mais de 3.500 animais já foram resgatados na região pelas equipes de salvamento e voluntários. Estima-se, no entanto, que o número seja ainda maior já que diversas associações de proteção animal e pessoas particulares estão tentando de todas as formas preservar as vidas de cães e gatos, em sua maioria.
Nas redes sociais vemos a manifestação de pessoas que, inconformadas, culpam os donos de abandono e crueldade. A grande questão é se, de fato, podemos responsabilizá-los pela atual situação desses pets.
A Constituição Federal Brasileira, em seu art. 225, parágrafo 1, inciso VII, determina que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, para isso, os animais devem ser protegidos de práticas que os submetem à crueldade. Considera-se, portanto, que o direito à dignidade animal constitui direito constitucional de última geração, ou seja, os animais não podem mais ser considerados coisas, como determina o artigo 82 do Código Civil, pelo fato de possuírem a capacidade de sofrer. O Código Civil, neste aspecto, seria flagrantemente inconstitucional e estaria em desacordo com o entendimento jurídico moderno.
A Lei 14.064/2020 alterou o artigo 32 da Lei 9.605/98 que prevê os Crimes Ambientais. Hoje, a punição para quem maltrata cães e gatos aumentou para pena de reclusão de 2 a 5 anos, o que significa que o legislador atribuiu o tipo de pena mais severo do nosso ordenamento para quem pratica atos de maus tratos a pets, podendo levar o autor do crime ao cumprimento de pena em regime fechado, conforme dispõe o artigo 33 do Código Penal.
Muito embora a lei não inclua explicitamente em seu dispositivo a situação de abandono, ao buscarmos uma definição legal para o ato de maus tratos, o artigo 2, inciso II da Resolução 1.236/18 do Conselho Federal de Medicina Veterinária determina em linhas gerais que qualquer ato que de alguma forma provoque dor ou sofrimento desnecessário ao animal pode ser considerado maus tratos.
Com respaldo Constitucional e Legal, nossos pets estão sendo cada dia mais protegidos pelo nosso ordenamento jurídico, o que reflete o desejo e a realidade social brasileira, considerando que, de acordo com o censo do Instituto Pet Brasil, os pets já são mais de 149,6 milhões em nossas casas.
A grande questão é se podemos considerar os donos desses mais de 3.500 animais resgatados apenas no Rio Grande do Sul, criminosos por terem abandonado os seus pets, submetendo-os ao sofrimento.
Não há dúvida de que esta situação de abandono levou todos esses pets a situações de sofrimento extremo, podendo ser consideradas até mesmo cruéis, levando dezenas de pessoas a se manifestarem acaloradamente contra os donos desses animais resgatados e mortos.
No entanto, temos que analisar a situação dentro de todo o contexto em que ela se insere e as normas do ordenamento jurídico brasileiro, em especial o direito penal, que é o ramo do direito responsável por regular os atos considerados infrações penais.
O artigo 23 do Código Penal prevê situações que, em ocorrendo, excluem a ilicitude do ato praticado. Isso significa, na prática, que o autor do ato, muito embora pratique uma conduta considerada crime, ainda assim, não será considerado como tendo praticado esse crime. Dentre essas situações especiais está o Estado de Necessidade. O Código Penal, em seu artigo 24, expressamente considera que o Estado de Necessidade se aplica às pessoas que praticam o ato considerado crime para salvar direito próprio ou alheio que não tenha provocado por sua vontade e não tinha meios para impedi-lo, sendo certo que não seria razoável exigir o sacrifício desse direito nas circunstâncias em que o ato ocorreu.
As chuvas desproporcionais que ocorreram no Sul podem ter colocado os donos de pets em flagrante Estado de Necessidade onde as pessoas tiveram que deixar suas casas às pressas por estarem sob risco de morte ou, ainda, tiveram que escolher entre salvar a própria vida ou deixar para trás seus animais de estimação. Nesse caso, o ato praticado ainda que em uma situação normal pudesse ser considerado como maus-tratos de acordo com a legislação brasileira, nessa situação especial, não será considerado crime.
A expectativa das autoridades e dos voluntários e associações que estão resgatando esses animais é que eles possam ser inseridos em novas famílias em breve, mas ainda melhor seria o reencontro dos donos dos pets que tiveram que tomar, muitas vezes, a dolorosa decisão de abandonar seus animais para poderem se salvar, salvar seus filhos ou parentes com seus amados animais.
Todos nós, donos de pets que amamos nossos animais temos a certeza de que no momento do reencontro esses animais correrão para os braços de seus donos abanando seus rabos, ronrorando e não se contendo de tanta felicidade, apesar de todo o sofrimento que passaram, pois do outro lado também existem os donos que estão sofrendo com essa separação e não há amor mais puro e incondicional do que o de um animal pelo seu dono.
Juliana Virginelli é sócia-fundadora do Dell’Ome & Virginelli Advogados Associados. Advogada, membro da OAB/RJ, com mais de 19 anos de experiência nas áreas de Direito Cível, Consumidor, Empresarial e Família. Formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Pós-Graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), e Mestre em Direito pela University of Miami (UM), Estados Unidos. Integrante da Primeira Turma de Juízes Leigos no Estado do Rio de Janeiro, Brasil.*