Uma onça no meu peito

Por Suellen Alves

Uma onça no meu peito

Prestes a completar um ano em quarenteRna, ninguém foge de enfrentar os próprios monstros e alimentar alguns mais. Existe um animal no meu peito que sempre viveu ali, acredito que nasceu comigo. Cresceu comigo. Minha mãe foi uma das primeiras a identificá-la:

_ É uma onça! – Dizia.

Sempre fez muito sentido ter um felino vivendo no meu peito, talvez seja deste lugar, o afeto que alimento por árvores, lugares tão confortáveis a elas. Esse mamífero carnívoro é considerado o maior felino das Américas e o maior animal carnívoro da América do Sul. Atualmente, tem sido ameaçado em virtude da caça e da destruição de seu habitat, tão parecida com as fêmeas da raça humana.

Sempre tentaram de alguma maneira silenciar a onça que mora no meu peito, mas meu peito é feito uma muralha e não é tão fácil assim silenciar o seu rugido, só eu sei o trabalho que dá.

Em contraponto, sempre soube o perigo de alimentar uma onça no peito. É um esforço mantê-la dormindo, é um esforço não irrita lá. Mas como todo animal selvagem, tem sua beleza e sua sagacidade. Quando ela desperta me coloca atenta, instintiva e imprevisível. Uma onça pintada, apesar de parecer um gato grande e inofensivo, é uma predadora hostil e impulsiva.

Não se deve querer silenciar onças!

Conforme os anos foram passando, percebi que em determinados locais minha presença só era tolerada em doses homeopáticas. Sei que é um receio que sentem em acordá-la em mim! Eles, que não entendem a selvageria que habita nosso humano. Ninguém quer pagar pra ver até onde uma onça vai. Foi constatando algumas coisas através de uma escuta afiada, que fui descobrindo sobre silenciamento.

Foi com uma sensibilidade à flor da pele e uma onça tentando me rasgar a unhadas, é que fui derrubando as barreiras, aumentando as minhas fronteiras e descontruindo meus limites, limites estes- impostos- que me ensinaram sobre o quão agressivo é silenciar.

Uma onça no peito, borboletas no estômago, um sol no olhar, tem dias que abraço meus demônios e seguro meu coração na mão. Seguro o coração e o impulso de alimentar a minha onça com ele, acabar logo com isso. Mas não dá pra ser casa de uma onça, prestes a entrar em extinção e entregar seu habitat assim, sem nem lutar.

Aos 18 anos eu trabalhava numa empresa e haviam 2 sócios, um deles era um respeitador senhor, que finalizava todas as frases com: – É só “pobrema”! Ríamos.  O outro era um escroto. Este segundo, me chamava em sua sala para me mostrar pornografia. As vezes que isso ocorreu, sentia minha onça rugir até trincar os dentes, tamanha vontade ela sentia de pular em seu pescoço e estraçalhar suas entranhas. Quando enfim tive coragem de dividir a situação, ouvi de outra mulher:

_ Manda quem pode, obedece quem tem juízo! – Com esse silenciamento, foi onde a necessidade falou mais alto, continuei na tentativa de calar a minha onça, mas não se doma animais selvagens, eu devia saber.

Aos 14, trabalhando em um escritório, todo dia ao ir embora, um homem que trabalhava da rua mexia comigo, eu reclamava.

_ É uma onça! Dizia ele com aquela cara de satisfação em me irritar. Sentia prazer ao ver o meu incomodo, tentando esconder o meu corpo com a mochila da escola, gostava de me ver incomodada e rugindo.

Maldito machismo, que nos coloca em situações tão abusivas e sem chance de defesa. Ah se eu pudesse tirá-la do peito, eles não fariam isso com mais ninguém- pensava eu.

Quando eu me sentia agredida, assediada, angustiada e eu ouvia das pessoas: – Homem é assim mesmo! No meu peito crescia esse desejo de acordá-la e alimentá-la, da carne desses machos escrotos que não respeitam ninguém, eu tinha medo do que pudesse vir a acontecer, se eu a soltasse.

Aparentemente, conforme fui crescendo, fui alimentando a minha onça e ela foi criando tanta força e tanto rancor dessa sociedade escrota e machista, que ela passou a me ignorar e então eu fui perdendo completamente o controle, quando eu percebi, ela já havia me dominado inteira.

As vezes não sei mais onde eu começo e ela termina, a gente se fundiu na nossa natureza ancestral, das feras grandes da floresta, sagazes e selvagens na mesma proporção.

Não foram poucas as vezes que ela tomou a frente, não foram poucas as vezes que ela me deixou sem chão, era um rugido alto, tão alto que todas as pessoas ao redor sentiam medo da sua fúria, inclusive eu. Uma dor ancestral de silenciamento. Uma dor que virou uma força sobre humana. Feroz!

Foram tantos gritos ignorados, tanta raiva disfarçada de tristeza. Tanta injustiça engolida, feito bola de pelo de felino gigante, me revirava por dentro, tanto pedido de socorro meu e de toda a alcateia, foi ficando ensurdecedor.

Tanta pessoalidade camuflada de coletivo que no lugar de respostas, fui vendo mulheres potentes se sabotando, na tentativa de calarem suas onças, foram se deixando domar. Quando eu paro para pensar em todas as histórias que chegaram aos meus ouvidos, em tantos lugares que deveriam ser lugares de acolhimento e foram lugares de agressão, me dói saber quantas vezes fui covarde.

Ultimamente sinto que minha onça anda cansada, envelhecendo e me questiono: Até quando vamos individualizar questões coletivas? Até quando vamos ter que colocar nossa presença em doses homeopáticas, para não assustar as pessoas silenciadas pelo medo.

Rasga o peito!

Rasga o peito as unhadas dela querendo sair. A gente vai ficando adulta e consegue perceber as escolhas, tantas vezes se quebrando e anulando nosso lado selvagem na intenção do se adequar aos estereótipos, performar feminilidade padronizada e inalcançável. Até quando?

Os debates avançam a passos lentos, enquanto centenas de mulheres continuam sendo assassinadas em seus lares.

A solidão é a resposta para as mulheres que assim como eu, alimentam uma onça no peito, então você abraça a beleza de ter em si um felino gigante e segue o seu caminho, porque quando você tem um animal no peito é preciso fazer escolhas, ou você abre mão do seu lado selvagem ou você se submete aos estereótipos aceitos.

Não dá para conciliar uma boa moça aos moldes patriarcais, quando se é uma força da natureza, não se pode matar uma onça no peito e entrar em caixinhas que não nos cabem.

Então, a gente supera os sintomas de querer se adaptar a uma vida vazia, faz as pazes com ela e percebe que: Se tem beleza maior do que a força e a complexidade da mulher que tem uma onça no peito e do rugido que grita por justiça- eu desconheço!

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