Cavalo do mato

Ou sobre socialização e relações abusivas

Saía do olho de um furacão e achava que o pior tinha passado, mal sabia na minha inocência, que o pior estava por vir. Sempre me fiz de forte, sempre me entendi como uma pessoa que não se abala facilmente, me joguei dos mais altos abismos sem nem pestanejar, infelizmente, o consciente é uma pequena parte representativa e tem muito mais inconsciente arraigado em nós do que queremos  admitir.

 

Tudo começou na pandemia, ou melhor, veio à tona, eu sabia que tinha um problema e que eu não poderia evitá-lo pra sempre. Tentei forjar soluções das piores formas possíveis-  fugindo- através do álcool, excesso de trabalho, excesso de ocupação, excesso de açúcar, excesso de gente, tudo exagerado, tudo em mim era enorme, meu drama, meu caos, minha euforia, meu entusiasmo.

Não conseguia silenciar os pensamentos em hipótese alguma, tudo gritava e eu não sabia lidar com a dor do sonho desfeito, dos planos desmoronados, do felizes para sempre que eu tinha idealizado e não existiria, do filhinho que eu desejei uma vida inteira, mas nunca tive coragem o suficiente para planejar sua vinda ao mundo.

 

E apesar de toda a maternidade que foi alimentada em mim cuidando de todos ao redor, estava na hora de cuidar de mim. 

 

Não sabia lidar com a dor que tinha feito morada. Me enganava no barulho e não me ouvia. Não ouvia meu corpo, não ouvia meus desejos, não ouvia minha alma gritando por silêncio. Assim como, na época desse “casamento” não ouvia todos os abusos, toda a toxicidade de ambas as partes, de como aprendemos a amar de forma tão disfuncional e agressiva. Era amor, só não era saudável. 

 

O amor a tudo suporta! Diziam… Mentiram! O amor não suporta desrespeito, falta de consideração, grosseria, indiferença. O amor é alimento para alma e quando vira veneno, é hora de se retirar.

 

Nesse momento entra a caminhada em busca do amor próprio. A auto aceitação também não é receita de bolo, demorei anos para entender que aparência é o último lugar na construção de uma auto estima carinhosa e sem culpa.

Não ter que lidar com o que nos atravessa é um lugar quentinho, porém solitário e inegociável.

 

O confronto consigo mesmo acontece no amor ou na dor, é inevitável.

 

Um orgulho e uma rebeldia que não combinavam em nada com quem eu queria ser… mas afinal, quem eu queria ser? Você já se fez essa pergunta?

Teve terapia, teve conversas longas com as irmãs que a vida me deu, teve noites regadas a álcool com estranhos, teve amnésia de corpos vazios que eu me ocupei e desperdicei meu tempo, teve um vazio profundo porque não sabia o que de fato eu buscava além da validação externa e da diversão. 

 

Teve choro, muito choro e teve também muito riso, porque só sabia viver assim, mostrando os dentes e as vísceras. Muita exposição, segundo minha psicóloga.

Como é duro ser dessas mulheres que não se identificam com os estereótipos propostos socialmente e é ainda mais duro não saber muito bem como ser diferente disso. Falar de feminismo, de igualdade já não me preenchia mais, eu vivo isso, afinal, como diria Simone de Beauvoir “ Não se nasce mulher, torna-se”! No fim eu não queria explicar ou entender mais nada. Estava exausta!

 

“Então você se encontra morando num limbo entre a vagabunda e a boa moça.”

 

A boa moça foi alimentada em mim durante toda uma vida inteira, por minha família tradicional brasileira, a qual eu vivo e morro por ela, mas moldou minha forma de amar também na guerra. E a rebeldia de constatar o machismo que eu identificava na vida cotidiana me fazia rebelde e alimentou a “vagabunda”, a mulher desejante que queria gozar, que queria se divertir, que não queria ficar na prateleira do amor, eu nunca fui caça! Achava que isso era liberdade, mas no fim eu seguia presa. A culpa cristã me sugava a alma. Não queria ter que lutar, a vida me colocou de guarda alta pelo machismo que sofri e observei.

 

Enquanto isso eu naturalizava padrões, reproduzia abuso, controle, achando que isso era amor. Nunca foi. Mas o tempo é rei, e se, errei tantas vezes, foi tentando acertar, quando eu me sentia completamente perdida, após relacionamentos fracassados e sem entender muito bem que a solidão podia ser minha melhor companhia.

 

Foi com a pandemia que minhas carências chegaram com os dois pés no peito, com ela, gastrite, crise de ansiedade que virou transtorno de ansiedade generalizada, aquele monstro que eu vinha alimentando a muitos anos atrás e não queria olhar para ele ficou gigante e me derrubou. Voltei pra perto dos meus, me permitir ser vulnerável, pedi colo.

 

A realidade se impõe! Não dá pra fugir pra sempre.

 

Foi nesse momento que resolvi resgatar o que aprendi que seria o melhor sendo mulher. Ter uma família, ter uma relação e deixei minhas frustrações escolherem por mim. Vivi então o relacionamento mais tóxico da minha vida, uma pessoa cruel, narcisista, um lobo na pele de cordeiro e apesar do trauma e da ferida aberta que deixou, me ensinou a nunca mais colocar terceiros como protagonistas da minha vida. Foi nessa relação que eu ouvi tanto que eu não me valorizava, que eu entendi sobre não aceitar migalhas, que eu entendi que confiança é a base de tudo e principalmente que quem muito te apequena é inseguro consigo mesmo. 

 

Foi através de muita dor, choro e culpa que eu entendi que amor confia, amor não subtrai nossos acertos e maximiza nossos erros, foi através do olhar amoroso da minha rede de apoio que eu entendi, que apesar de toda minha auto punição e a culpa cristã que carreguei uma vida, eu era sim, enfim, uma mulher livre, não do julgamento alheio, porque línguas sempre serão facas afiadas enfiadas no coração dos empáticos, mas livre de ter que parecer, livre de me quebrar pra caber, livre pra ser eu mesma.

Os 40 estão logo ali, posso não estar como eu imaginava, mas fiz o que pude nas condições que tive. 

 

Quando olho pra trás, certamente eu jamais repetiria pra mim mesma “Prefiro me arrepender do que não fiz”, eu poderia sim ter me poupado, me tratado com muito mais carinho, ter impedido o acesso de qualquer um a mim, ter dado menos ouvidos às críticas, mas a maturidade chega e que delícia poder ter essa conversa dentro da melhor e mais saudável relação que estou vivendo.

 

A relação comigo mesma! Protagonista da minha vida.

 

Meu ex falava que eu era um cavalo do mato e quer saber, sou mesmo, com as rédeas na minha mão, os erros foram meus e os acertos também, já não me justifico, na minha fase mais sozinha é que me sinto mais completa do que nunca, me cuido, me protejo e como costumo dizer, tô me tratando bem e para alguém permanecer na minha vida, eu não aceito menos que isso. 

Foi tropeçando que cheguei até aqui, mas sigo inteira, me recuso a ser domada, meu pais não me educaram para ser submissa e sinto que estou exatamente onde eu deveria estar, mente blindada, auto estima restaurada e consciente de que tudo que eu preciso tá comigo e principalmente, amor nunca faltou e que nunca falte! 

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