Carcaças de Poéticas Negras estreia a peça Quando eu Não Puder Pisar Mais na Avenida, ocupando viaduto no Glicério
O espetáculo acompanha um grupo de revolucionários que busca resgatar Samba, preso há décadas por colocar Exú na avenida
A partir do dia 17 de setembro, sábado, 20h, o elenco da coletiva Carcaças de Poéticas Negras parte de um bar na Rua Egas Muniz de Aragão, 33 – Bar da dona Solange – Liberdade, São Paulo (há 7 min a pé da estação) e ocupa o viaduto que abriga o Batuq do Glicério. O trajeto sugere ao público uma viagem no tempo, tanto para o passado quanto para um futuro próximo e nessas expedições, a velha-guarda de uma escola de samba articula uma revolta que se iniciará no carnaval. O sonho de revolução visa trazer de volta à avenida as Escolas que mantém as tradições negras que deram origem ao samba, já que elas foram rebaixadas desde que Samba foi preso, personagem interpretado por Val Ribeiro. Com direção de Lucélia Sérgio, que também assina dramaturgia em processo colaborativo com a coletiva, e direção musical de Fernando Alabê, o elenco conta ainda com Cibele Mateus (Nega Véia), Jack dos Santos (Bombinha), Jéssica Nascimento (Dona Pirapora), Joy Catharina (Kuntuala), Piu Guedes (Zézinho Barra Funda) e Tricka Carvalho (Ela de Nascimento).
O trabalho investiga o Samba de São Paulo, o processo de urbanização da cidade e a discriminação racial na construção da ideia de cultura nacional. Durante o processo de pesquisa os artistas fizeram entrevistas com integrantes da velha guarda, além de falar com historiadores, pessoas do samba e de religiões de matrizes africanas para vislumbrar a cultura negra paulista daqui há 40 anos, bem como a luta por sua existência num futuro que se mostra contrário a ela. “Hoje não temos pessoas negras definindo as regras e os rumos das Escolas de samba em São Paulo. Estamos vendo as Escolas serem jogadas na marginal para não atrapalhar os vizinhos, vendo o metrô arrebentar o Quilombo da Saracura. Nós sabemos muito pouco sobre a história do nosso samba, e a tentativa de apagamento da raiz Negra no samba anda a passos largos, no entanto os sambistas continuam resistindo. Tentar entender o que nos convocou e o porquê, é a trajetória desse espetáculo. Nós nos inspiramos nessa história para falar do massacrante processo de racismo persistente em nossa sociedade. É sobre nós artistas e portanto é também sobre todos, para além das portas do nosso teatro”, diz Lucélia Sergio.
O espetáculo pretende encarar a tarefa de imaginar o futuro olhando para o tempo de forma espiralar, como sugere a escritora Leda Maria Martins, misturando personagens de diferentes tempos históricos que representam a ancestralidade negra do samba e sua força mobilizadora. É com a alegria que é produzida pelo toque dos tambores, pelo canto e pela dança que a peça nos convida a refletir sobre as transformações sociais e tecnológicas que na atualidade têm gerado individualização, exclusão e retrocessos sociais.
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Ela – Me desculpa, mas não consigo entender o que a senhora tá dizendo. Se eu pudesse voltar atrás ou parar o tempo, refazer, revoluir, revoltar? Eu queria aprender o significado do que seria vencer. Estamos vivendo numa guerra e quais são as nossas armas? Quais são as nossas defesas? Eu tô cansada de fugir. A senhora não imagina o quanto eu precisei fugir pra ser quem eu sou. Isso não é certo com uma pessoa. Fazer com que ela não se sinta gente…
Dona Pirapora – Eles falavam que isso aí atrapalhava o andamento da escola, acredita? Não jogaram toda a velha guarda no carro? E por que? Porque a Velha guarda atrapalha a escola, a baiana atrapalha o andamento da escola, a criança atrapalha o andamento da escola, então… Dali a pouco foi a bateria que entrou num carro para não atrapalhar o andamento da escola. O samba foi minguando e todo mundo ficou ruim da cabeça doente do pé.
Trecho da dramaturgia de Quando eu Não Puder Pisar Mais na Avenida
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Quando eu Não Puder Pisar Mais na Avenida
Foto de Noelia Nájera
A direção de arte é assinada por Guilherme Funari, Lia Damasceno, Wanderley Wagner e o aderecista Andy Lopes, a obra traz figurinos alusivos às alegorias e fantasias de carnaval da avenida, mas também das manifestações de rua afro-brasileiras e de várias etnias africanas, para revelar personagens que representam funções importantes, como o mestre sala, porta-bandeira, as baianas, comissão de frente, a cantora que puxa o samba e as demais alas de fundamento dentro do samba paulista.
O convite para que Lucélia Sergio e Fernando Alabê participem da criação do espetáculo vai ao encontro da coletiva de fortalecer sua própria identidade artística e buscar novas reverberações na construção do teatro negro contemporâneo. Última peça de uma trilogia que buscou investigar a fuga como tema, o enredo acompanha uma grande ação organizada para libertar Samba, preso há 40 anos por colocar Exú na avenida. Quando a missão falha, os rebeldes precisam se reorganizar antes da quarta-feira de cinzas, num país recolonizado e mediado por inteligências artificiais que conservam a mão de obra reescravizada sob total controle.
A última escola negra já havia sido rebaixada há muito tempo no carnaval e não podia mais desfilar, até que uma ala de compositores resolve viajar no tempo, em busca do reencontro com Samba. Eles costuram o enredo de um futuro sonhado que, apaixonado pela revolução, se prepara para desfilar na avenida novamente, cantando o enredo “Samba, feitiço negro que trará a liberdade”.
Além de tentar construir um futuro imaginado no qual seja possível acabar com a discriminação racial, o espetáculo também busca discutir outras questões transversais de identidade. Lucélia Sérgio nos conta ainda que, durante a pesquisa para dar forma ao trabalho, as questões de gênero presentes na equipe foram determinantes para pensar numa luta negra polifônica, múltipla e integrada às diversas humanidades que formam nossa sociedade. Na peça a personagem principal é uma travesti (interpretada por Tricka Carvalho), que foi escolhida para carregar o pavilhão da Escola, a grande dama da avenida.
A importância de nossos corpos nas artes, por um teatro negro transcentrado
A coletiva Carcaça de Poéticas Negras atualmente é gerida por Piu Guedes e Tricka Carvalho.
Ele, um transmasculino e ela uma travesti, ambos com 26 anos, nascidos nas periferias de São Paulo, são artistas negros em busca de reconhecimento de suas narrativas dentro da arte contemporânea, principalmente no que se diz respeito às teatralidades negras. “Fazer arte para nós é uma questão de sobrevivência, já que estamos no país que mais mata pessoas trans no mundo, onde a expectativa de vida para nossos corpos, segundo o IBGE é de até 35 anos, enquanto a população em geral é de até 75 anos. Temos como objetivo fomentar imaginários de vida para corpos trans e assim continuar a compor nossa transcetralidade.”
Os corpos trans compõem a sociedade desde que o mundo é mundo mas, nossa presença ainda não é naturalizada nos espaços públicos, íntimos e privados. Nas nossas últimas pesquisas as questões de gênero foram esboçadas, já que somos dois corpos em transição hormonal de gênero, mas nunca tratadas com protagonismo nas grandes mídias. Nesse último trabalho que fecha uma pesquisa sobre a fuga e o corpo negro urbano, vimos a necessidade de trazer essa pauta para ser discutida dentro da narrativa poética que estamos construindo, pois é o momento onde estamos assistindo nascer trabalhos que cada vez mais dão foco a nossa singularidade e poesia.
Por Piu Guedes e Tricka Carvalho
Carcaça de Poéticas Negras
A Carcaça de Poéticas Negras é uma coletiva teatral que desde 2015 constrói um trabalho de pesquisa em teatro colaborativo, trans, cênico e étnico-racial, fundada por ex-aprendizes da Escola Livre de Teatro de Santo André.
Em seu repertório estão três espetáculos que compõem o projeto intitulado “Trilogia da fuga” contemplado pela Lei de Fomento ao teatro da cidade de São Paulo.
“Mato Cheio” (2017) com direção de Ivy Souza, se propõe a refletir o passado a partir de como o corpo negro permanece em estado de fuga mesmo após o período escravocrata no Brasil, “Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã” (2018) com direção de Naruna Costa, discute o tempo presente a partir do genocídio da população negra e jovem no atual pais.
E “Quando eu não puder pisar mais na avenida” (2022) com direção de Lucélia Sérgio que propõe um futuro onde essa fuga se transforma, a partir do samba e da ancestralidade, em revolução. Já que para corpos trans e negros, pensar o futuro é um sonho onde precisamos estar o tempo todo acordados.
Ficha Técnica
Realização, idealização e Gestão de Projeto: Coletiva Carcaça de Poéticas Negras – Tricka Carvalho e Piu Guedes
Direção: Lucélia Sergio
Dramaturgia: Lucelia Sergio em processo colaborativo com a Carcaça de Poéticas Negras
Direção Musical: Fernando Alabê
Elenco: Cibele Mateus (Nega Véia), Jack dos Santos (Bombinha), Jéssica Nascimento (Dona Pirapora), Joy Catharina (Kuntuala), Piu Guedes (Zézinho Barra Funda), Tricka Carvalho (Ela de Nascimento) e Val Ribeiro (Samba)
Músicos: Clency Santana e Ademilson Marçal
Coro: Victor Salomão
Iluminador: Rager Luan
Criação sonora e DJ: Decoff
Treinamento corporal: Rodrigo de Odé e Wellington Campos da Silva
Preparadora Vocal: Adriana Moreira
Direção de Arte: Guilherme Funari, Lia Damasceno e Wanderley Wagner
Aderecista: Andy Lopes
Direção de palco: Rogério Santos
Contra Regra: Victor Salomão
Colaboração Teórica: Amailton Azevedo
Registro visual: Noelia Nájera
Produção Executiva: Raoni Gabriel
Produção Geral: Lud Picosque – Corpo Rastreado
Assistente de produção: Piu Guedes
Entrevistas de processo: Ane Caetano, Camille Kori, Carolline Barbosa, Evens Clercema, Harry de Castro, Ísis Cunha, Mãe Juci Freitas, Lua Candeia, Maria Helena Embaixatriz, Maria Ribeiro, Marieta Guedes, Mestra Aurinda do Prato, Rô Albuquerque, Tata Katuvanjesi, Terra Queiroz, Velha Guarda da Barroca Zona Sul (Delaci Lima, Laércio Minas e Suely Aparecida), Vulcânica Pokaropa e Waldir Dicá
Colaboração afetiva: Bárbara Arakaki, Jennifer Souza e Marcos Emanoel
Agradecimentos especiais: Os Crespos, Ilu inã, ultraVioleta_S, Escola de Samba Barroca Zona Sul e Ramon Zago
Espaços parceiros: Bar da dona Solange, Batuq do Glicério, Centro de Referência da Dança, Cia Criativa, Corpo Rastreado, Pequeno Ato, Ila Bantu Inzo Tumbansi e Ylê Ifá Okaran Iká
Serviço
Quando eu Não Puder Pisar Mais na Avenida
Temporada: 17 a 29 de setembro de 2022 | 08 á 16 de outubro de 2022
1º Semana: Sábado, às 20h e domingo às 19h
2º Semana: Sexta e Sábado às 20h domingo às 19h
3º Semana: Terça, quarta e quinta às 20h
4º Semana: Sábado às 20h domingo às 19h
5º semana: Sábado às 20h domingo às 19h
Local:
Bar da dona Solange – Rua Egas Muniz de Aragão, 33 – Liberdade, São Paulo
(há 7 min a pé da estação)
Duração: 120 minutos