Ver e olhar, uma diferença fundamental
A diferença entre ver e olhar está relacionada a dicotomia clássica entre o biológico e o psíquico. Essa distinção, entre outras coisas, serve para que as sociedades se organizem e também tem efeitos na forma como nos relacionamos com os outros.
Sigmund Freud abriu um novo caminho para pensar o olhar em relação à tradição filosófica racionalista, que marca a visão como algo enganador em comparação à possibilidade de “enxergar” (ver) através da razão, até as conjecturas sobre o olhar como atribuição humana em virtude do que se vê da natureza. A teoria psicanalítica fez uma quebra paradigmática tanto em relação à concepção racionalista como à naturalista, rejeitando a ideia do sujeito que por pensar passa a existir ou que existe porque pode enxergar (ver). A noção psicanalítica pressuporá que o sujeito é consequência da sua relação com o outro, com o desejo e, consequentemente, com a falta. É nessa relação fundamental que ele estabelece sua identidade no mundo, na realidade comum, onde a linguagem reina e onde ele será inserido e aprenderá seus códigos de comunicação. É nessa concepção constitutiva que o olhar se destaca, sempre em relação a uma falta que impulsiona para o encontro com algum objeto.
Freud inaugura a ideia do olhar como pulsão e também marca, mais uma vez, o conflito entre inconsciente e consciência: “as pessoas histericamente cegas só são cegas na consciência, no inconsciente elas veem” (1910). Desta forma é marcado uma distinção e uma relação entre biológico e psíquico: se a boca serve tanto para beijar, como para comer e para falar o olhar também serve para diferentes funções.
A partir desse marco teórico uma diferença fundamental é estabelecida, ver (função do olho) não é olhar (função do desejo). Nós vemos a imagem na qual nos reconhecemos de alguma forma e somos tocados pelo olhar.
Se o olhar está relacionado à relação do sujeito com o seu desejo e com os outros, então podemos pensar o “culto ao olhar” (espiar, provocar ser olhado pelo maior número de pessoas, fobia de ser olhado…) como uma tendência contemporânea funcionando à serviço de uma maneira muito específica de comportamento. Não temos necessidade de ver e sim desejo de olhar.
Caso reconheçamos a diferença entre ver e olhar talvez possamos pensar em novas possibilidades para um “novo olhar”, voltado ao desejo subjetivo e não manejado por interesses estabelecidos pelo conjunto social.
Juliana Portilho é Psicóloga, Psicanalista, Mestre e Doutora em Filosofia, Pós-doutoranda em Psicologia Clínica (IP-USP) e Professora da Estácio Curitiba.