Por que precisamos ler mais mulheres
Começo este artigo contando um pouco sobre minha formação acadêmica. Sou Mestre em Filosofia e vivi imersa nesse mundo mais formal da pesquisa durante sete anos. Foram sete anos pesquisando uma tradição intelectual majoritariamente criada por homens brancos. Assim, durante muito tempo, eu acreditei que a lente pela qual podemos enxergar o mundo era formada por estudiosos do gênero masculino. Ainda bem que eu estava enganada e que existe um caminho diferente para escolhermos seguir.
Outro fato curioso que gostaria de compartilhar é sobre a busca de dados que antecedeu essa reflexão. Procurando alguns insights sobre “qual a porcentagem de mulheres lidas no mundo” (claro, a frase é bem ambígua e pode ter dado uma certa confundida nos algoritmos, mas mesmo assim, vale a problematização!), o Google corrigiu a minha busca para “qual a porcentagem de mulheres lindas no mundo”, e me devolveu uma série de links contendo listas de rostos femininos que ganharam esse título porque foram mapeados computadorizadamente de acordo com a proporção áurea.
Fiquei estarrecida. Afinal, é essa a questão que quero debater com o artigo que lhes escrevo: por que não lemos mulheres? por que, quando, ao repassar nossos arquivos mentais, enumerando os livros que lemos, os conceitos que aprendemos, revisitamos rostos masculinos, brancos, europeus? Por que, nós, mulheres (sobretudo brancas), temos nossos rostos milimetricamente medidos para descobrirmos se somos lindas segundo um padrão totalmente irreal e abstrato e nossas ideias não são lidas, ouvidas, incorporadas?
O ano é 2021 e o Google ainda corrige a palavra “lidas” para “lindas”. O ano é 2021 e ainda temos que fazer camadas de buscas na internet para pesquisar sobre um dado importante acerca das pensadoras e autoras.
Estamos passando por uma crise sem precedentes. O colapso – para onde quer que dirijamos nosso olhar – é generalizado: saúde, educação, renda, emprego. Tudo isso advém de um (suposto) projeto econômico que foi acolhido como projeto político neste país. Um projeto que brada a favor do neosujeito (o sujeito produzido pelo neoliberalismo – para conhecer esse conceito melhor, recomendo a leitura da cientista política Wendy Brown), aquele que é empreendedor de si, que acredita em ideias como “vai lá, você consegue”, e “sem mimimi”, na maior facilidade.
Porém, estamos falando de um país com problemas estruturais, dimensões continentais, localizado na América Latina, onde o “american dream” e os projetos do “Sillicon Valley” simplesmente não convêm (embora muita gente tente nos fazer acreditar nisso). Estamos falando de um país colonizado, racista e que ainda possui dívidas históricas a pagar.
Será mesmo o Brasil o país do neosujeito? Às custas de quem tal sujeito se constrói? Sem dúvida, não é apenas das custas de seu próprio trabalho, como muitos dizem por aí. Silvia Federici, filósofa e ativista, comenta que em cenários nos quais o desenvolvimentismo e a acumulação do capital são valorizados, as mulheres sofrem uma dupla exploração: como trabalhadoras e como quem dá a luz a novos possíveis trabalhadores. Nesse caso, num mundo no qual o lema é viver “sem mimimi”, o fazer é baseado na meritocracia, nós, mulheres, somos o chão do chão da fábrica.
Uma de minhas primeiras aulas sobre filosofia feminista e mulheres pensadoras foi sobre Federici. Tive o prazer de ser apresentada aos seus conceitos, que são críticas frontais às teorias de Michel Foucault e o estruturalismo. Federici é cirúrgica em seu questionamento: Foucault não considerou a realidade das mulheres ao construir seu conceito de “sujeito” dentro de suas teorias basilares. Um importante recorte de gênero que transformaria todo o olhar e análises de quem vive em países com questões estruturais, como o nosso. Tal recorte não foi considerado. Ainda bem que temos Federici para ser a porta-voz de muitas de nós.
Ler, analisar e olhar o mundo pela lente das intelectuais mulheres é simplesmente imperativo em tempos como o que estamos vivendo. Fomos arrastadas para um colapso que envolve questões básicas de saúde, meio ambiente, sustentabilidade, distribuição de renda. Todos esses temas estão sendo discutidos há centenas de anos por pensadoras mulheres. Assim, o que constatamos é que essa crise já vinha sendo anunciada por todas nós.
Nesta minha trajetória e busca por entender o mundo pela lente das mulheres, uma das grandes surpresas que a pandemia me trouxe em 2020, foi me deparar com a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Um grupo de mulheres, que, assim como eu, buscam respostas para os desafios do século XXI. Esse grupo me inspirou tanto que, foi o tema da minha participação no TEDxUFPR no final do ano passado. Todos os caminhos de resposta aos desafios do século XXI envolvem grandes quebras de paradigmas e mudanças de cultura. O momento é delicado, é de transição. Muitas das principais referências tornaram-se obsoletas rapidamente.
Ao ler e conhecer mais pensadoras mulheres, fui apresentada a outro cenário de futuro: um cenário no qual a “boiada” não passa e a Amazônia não está em chamas, mas no qual os seres humanos fazem parte de um ecossistema, que é um grande círculo – não uma pirâmide (uma figura que muitas vezes representa esquemas de opressão, exploração, distribuição desigual de poder). No cenário futuro trazido por intelectuais mulheres, a renda é distribuída igualmente.
Também há educação – voltada para o pensar – de qualidade para todes. Os direitos reprodutivos são respeitados. No futuro das intelectuais mulheres não há colonização. As comunidades de origem são preservadas, pois a ancestralidade é um marco fundamental da nossa existência.
No futuro trazido por intelectuais mulheres há horizontalidade, há revolução, há mudança. Há diversidade: presente no pensar, no vestir-se, no falar, no arcabouço teórico. Há muito mais saberes para além dos institucionalizados. Há muito mais conhecimento valoroso e valorizado para além do que foi construído pelos sapatênis, camisetas azuis e calças jeans.
No futuro trazido pelas pensadoras, nós sobrevivemos. Nós, mulheres, prosperamos. Nós e todes: porque o feminismo nunca foi sobre “ser uma escada”, (nas palavras de Federici), mas sempre foi sobre igualdade e liberdade. Se é isso que queremos e sempre sonhamos, porque ainda insistimos em antigos modelos? Leia mulheres e descubra o futuro belíssimo que está por vir.
Rafize Santos é Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e fundadora da Badass Mentoria Profissional para Mulheres.