Reminiscências de um menino

O homem está no menino, só que ele não sabe.
O menino está no homem, só que ele esquece.
Ziraldo

Interessante como algumas imagens e acontecimentos de nossa infância retornam a nossa lembrança depois de um longo tempo. E mais interessante ainda é o fato de que o significado que damos é diferente daquele de quando éramos crianças. Parece que é algo que fica guardado para quando a gente crescer entender. Ou não! Não sei? Sei que me lembro como se fosse agora, e nem preciso fechar os olhos para isso… havia chegado na cidade o circo! Era o comentário geral! Na cidade pequena onde eu morava o circo era sempre novidade que vinha, ficava, e logo ia embora.

Vejo agora mesmo a rua lá de casa: meninos e meninas brincando, fazendo algazarra. NOSSA! Como era perigoso se machucar! Cair no “bueiro”, da bicicleta, da árvore! Mas isso é coisa de gente grande pensar, criança não pensa nessas coisas não! DE REPENTE um grito: – “Vem para casa menino, está na hora banho, senão não vai ao circo!”. Os meninos, e as meninas também, pois elas também gostam de circo, desciam da árvore, deixavam o “carrinho de rolimã” de lado, saiam de seu “esconderijo”, deixavam as bicicletas, esqueciam que a bola tinha ido para o “bueiro”. Corriam para suas casas sujos, pois brincaram o dia todo. “Menino! Como você consegue se sujar tanto?”.

Era a estreia! Todo mundo estava ansioso e apressado para ir. “Menino, espera teu pai chegar! Ainda tem tempo!”. Mas todo mundo já estava a caminho, só faltava o menino! Estreia tem que chegar cedo para pegar lugar na frente. “Que droga! Quero ir logo! ”… “PAI? Chegou! Vamos logo! Tem que chegar logo para sentar na frente! Vamos logo pai! ”.

Finalmente, O CIRCO! Como era bonito! Durante o dia não dava para ver direito, não era tão bonito não, mas agora estava iluminado! Quantas luzes! Tinha estrelas coladas na lona, eram amarelas! A bilheteria só pai e a mãe alcançavam para comprar os ingressos. “Vamos entrar logo pai! Vamos logo!”. Lembrando agora vejo como era velha a lona do circo, furada, a madeira da arquibancada era frágil e suja! Mas isso é coisa de gente grande pensar, criança não pensa nessas coisas não! Criança vê o circo como o circo é: bonito, alegre, cheio de encantos! E como era grande! Colorido! Quantas luzes! Quanta gente! Todo mundo gosta de circo! “Vamos pai, vamos entrar! ”.

Entregaram os ingressos na portaria, dali em diante a aventura só estava começando! E que começo! Um passo, o menino olha para um canto: algodão doce! “Quanto será que custa?”. Outro passo, olha para um outro canto: maçã do amor! Vermelhas e brilhosas! Olha! Tem também vendedor de balões, de todas as cores, combinam com o circo! Caminham mais um pouco, já é possível visualizar o picadeiro, hora de subir na arquibancada! Ainda tem lugar na frente! Então não precisa subir! “Será que vai demorar para começar?”. Olha ao redor. Quanta gente! “É, realmente as pessoas gostam de circo!”. “Olha a tia lá mãe!”. “Dá tchau para ela menino! ”.

“RESPEITÁVEL PÚBLICO! ”. “Eba, vai começar o espetáculo!”. Apagam-se as luzes da arquibancada, acendem-se as luzes do picadeiro. “BEM-VINDOS AO CIRCO!”. “Quem será que vem primeiro? Será que tem mágico? E homem que engole espada?”. Começa a música e todos acompanham com palmas: “Ila, Ila, Ilailariê, o, o, o, o, o! Ila, Ila, Ilailariê, o, o, o, o, o!”.

Vem a hora mais legal! Chega o palhaço! Risos e mais risos! Todo mundo gosta de palhaço né? Roupa colorida, sapatão, peruca verde, nariz vermelho! Porque todo palhaço tem nariz vermelho? Palhaço faz a gente rir! Conta muitas anedotas e canta uma música, é sobre uma mulher que tem nome de Teresa. A canção era assim: “Tereza, Tereza, tem pena, tem dó, o teu olhar é tão singular, me faz sofrer me faz chorar”. Risos e mais risos, mas como alguém pode rir de uma coisa tão sem graça dessa? Mas isso é gente grande que pensa, e gente grande chata, criança não pensa assim, ri da cara do palhaço que canta: “Tereza, Tereza, tem pena, tem dó, o teu olhar é tão singular, me faz sofrer me faz chorar”.

Mas afinal? Quem seria essa Tereza? Na verdade, não sei, isso é preocupação de gente grande, menino só acha engraçado a música cantada para a Teresa. Mas porque a Teresa abandonou o palhaço? Tem pena Tereza, tem dó…
Ahhhhhhhhh! Termina o espetáculo! Aplausos! Aplausos! Foi tão rápido! “AGRADECEMOS A TODOS PELA PRESENÇA!”. “Pai, amanhã eu quero vir de novo, você deixa?” “Cuidado! Vai cair, dá a mão para o pai!”. Todo mundo quer sair na mesma hora. Quanta gente! Desce a arquibancada, o olho do menino ainda está no picadeiro, a música volta a tocar “Ila, Ila, Ilailariê, o, o, o, o, o! Ila, Ila, Ilailariê, o, o, o, o, o!”. Passo a passo o circo vai ficando para trás! Um passo e o menino não vê mais o picadeiro! Outro passo, fica para trás o tio dos balões! Mais um passo, não dá para ver mais a tia do algodão doce! Aos poucos, o circo todo vai ficando para trás!

O menino chega em casa, mas não consegue dormir! Ainda pensa no circo! Ainda pensa no palhaço e na Tereza. Mas tem que dormir para acordar cedo, amanhã tem “escola”! Amanhã tem que brincar! Passou uns dias… quantos dias? Na verdade, não sei? Hoje é o último dia! Passou tão rápido! Os outros meninos chamam para ir ver desmontar o circo! Aos poucos, não há mais colorido, nem estrelas amarelas! Não tem algodão doce, nem maçã do amor, nem balão! Vai embora o circo! “Logo vem outro menino!”.

Volto a minha vida presente, estou em frente a um computador, tenho um relatório para entregar, o último dia é amanhã! Agora não dá mais para brincar, agora tenho que trabalhar! Ficaram só minhas lembranças de menino que às vezes, como agora, vêm. Mas o trabalho não pode ficar para depois. Ou pode? Na verdade, não sei? Mas… e a Tereza? Será que voltou para o palhaço? Porque não esqueço o olhar triste dele? Mas como triste? Palhaço não é engraçado? Na verdade, não sei?

Hoje o olhar dele me parece triste! Já expliquei! Às vezes vem uma lembrança, mas o significado que damos é tão diferente de quando éramos crianças, parece que é algo que fica guardado para quando a gente crescer entender. Na verdade, não sei? Mas Tereza tem pena! Tem dó! O teu olhar é tão singular! Hoje sei o que significa singular! Tem pena Tereza, tem dó! Fez o palhaço chorar! Para sustentar o riso do palhaço, quando choro será preciso?

Wallisten Garcia, psicólogo, mestre em Psicologia pela UFPR, especialista em Terapia Familiar, doutorando em Educação pela UFPR e professor da Estácio Curitiba

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