500 mil médicos: Brasil atinge marca estratosférica focado na quantidade e não na qualidade

O Brasil cravou a marca de 500 mil médicos em atividade, com índice aproximado de 2,3 médicos por mil habitantes. O número relativamente alto de profissionais, no entanto, não tem significado acesso à saúde de qualidade para todos os brasileiros. Pesquisa do Instituto Datafolha, de 2018, indicava que 90% dos brasileiros consideram os sistemas público e privado de saúde como péssimo, ruim ou regular. Na rede pública, 74% dos respondentes indicaram dificuldades para marcar consultas com médicos especialistas e 68% tiveram problemas com cirurgias.

Os dados de São Paulo podem começar a indicar alguma das causas dos problemas apontados pela população. Quase um terço do meio milhão de médicos brasileiros – cerca de 142 mil – está no estado. Desta forma, entre os paulistas, a razão de profissionais de Medicina por mil habitantes está na casa dos 3,2. O Brasil e o estado de São Paulo, apesar das evidentes dificuldades, estão na média internacional ao observarmos os números de Reino Unido (2,5 médicos por mil habitantes), Espanha (3,6) ou Itália (3,6).

Essa é a avaliação de Luiz Eugênio Garcez Leme, 4o vice-presidente da Associação Paulista de Medicina. “Ocorre uma grande assimetria na distribuição. Enquanto a região Norte do Brasil tem uma média de 0,92 médico por mil habitantes, a região Sudeste tem 2,43. A cidade de São Paulo, por exemplo, tem 4,31 médicos por mil habitantes, índice que se assemelha à média dos Estados Unidos. Enquanto Osasco, com 0,61, e Maranhão, com 0,62, aproximam-se da Índia, com 0,7 médico por mil habitantes”, exemplifica o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Ter 500 mil médicos atuando no Brasil é uma boa notícia? Para José Eduardo Lutaif Dolci, diretor Científico eleito da Associação Médica Brasileira (AMB), o número por si só é positivo, mas não altera o panorama do maior problema da saúde brasileira: a distribuição dos profissionais médicos. Em seu entendimento, o primeiro motivo para que a presença dos médicos em todo o Brasil seja tão heterogênea é a falta de uma política nacional de carreira para o médico, nos mesmos moldes como há para delegados, promotores e juízes.

“Nós, médicos, temos lutado há muitos anos por isso, mas o Governo sempre diz não ter verba. Outros programas, porém, foram colocados. Como o Mais Médicos, que teve um investimento absurdo e não resolveu o problema”, argumenta Dolci, que também é diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP).

 

FIXAÇÃO DOS PROFISSIONAIS

O segundo ponto levantado pelo especialista são as escolas médicas abertas com o pretexto de reter o médico no local de formação. “Escolas em cidades pequenas não fixam médicos porque os locais não oferecem muitas possibilidades de trabalho futuro. Por outro lado, a maioria das residências está nos grandes centros, que contam com mais recursos para a prática clínica”, argumenta o presidente da APM, José Luiz Gomes do Amaral.

Garcez Leme também tem leitura parecida do problema: o atual sistema não permite uma distribuição homogênea dos profissionais de Saúde. “A proposta da Associação Paulista de Medicina e de outras entidades é de que seja criada uma Carreira de Estado para o médico”, explica o vice-presidente da Associação.

Os médicos apontam mais questões como impeditivos da fixação dos profissionais em locais mais distantes. “O profissional pode ficar à mercê da política e do prefeito local, que simplesmente pode não querer mais que o médico siga nesses locais”, complementa Dolci.

O diretor da FCMSCSP reforça que é necessário atenção ao binômio carreira do médico e condições locais para desenvolver a Medicina. “O profissional desejará, claro, sempre atuar em ambientes em que possa desenvolver a sua profissão de maneira adequada, ao mesmo tempo que preferirá viver em cidades onde suas famílias possam lhe acompanhar em segurança.”

Amaral acredita que o melhor modelo para fixar profissionais em áreas remotas no Brasil é o sistema de rotação, no qual os médicos e outros profissionais trabalham por alguns períodos nos lugares de forma alternada, como ocorre em outros locais do mundo, a exemplo do Canadá.

 

FORMAÇÃO MÉDICA

Além do viés do acesso à saúde para toda a população, a marca de 500 mil médicos levanta outra dúvida: com tantos profissionais, é possível garantir que todos estejam plenamente preparados para atender a população? O primeiro ponto a ser observado, para Luiz Eugênio Garcez Leme, é que o Brasil teve, nos últimos anos, um aumento explosivo de escolas médicas. “Desta forma, a maior parte delas corresponde a instituições novas, em muitos casos ainda sem densidade de ensino.”

Se associam, dessa maneira, dois problemas, argumenta o professor da FMUSP: “A formação de corpo docente, dificilmente obtida em tempo reduzido, e a limitação na parte prática, pelo número de hospitais-escola que não acompanha o crescimento do número de escolas médicas. Um terceiro problema que se coloca é a defasagem do número de formados com a quantidade de vagas para residência médica”.

Partindo desses elementos, o vice-presidente da APM entende que existe a necessidade de se rediscutir a formação de médicos no Brasil, bem como a de outros profissionais de Saúde. “Tão

importante quanto sabermos quantos médicos formamos, é saber que médicos formamos”, completa Garcez.

Ter meio milhão de médicos no Brasil, em 2020, é o resultado de um processo que começou no início dos anos 2010, com uma abertura indiscriminada de escolas médicas, avalia José Eduardo Lutaif Dolci. “Há necessidade de revisão da matriz curricular das escolas de Medicina, com reavaliação por parte do Ministério da Educação, que deve exigir qualificação mínima do profissional que se forma”, analisa.

Nesse sentido, o diretor da FCMSCSP lembra iniciativas como o Exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), teste de proficiência para graduandos, que aconteceu entre 2005 e 2018 em São Paulo, cobrando conhecimentos básicos dos médicos. Ainda que exigindo apenas 60% de acerto, os resultados foram assustadores, com reprovação média de 50%.

O exame nunca foi vinculativo à obtenção do diploma, embora esse seja o cenário defendido por diversos especialistas. “Existe uma colocação do ponto de vista do consumo: vai deixar o estudante ficar seis anos em uma escola e depois não poderá exercer a profissão? Sim. Isso ocorre também no Direito. A questão é: ou você qualifica adequadamente o médico ou fecha a porta da escola”, diz Dolci.

Para o especialista, a relação de consumo em uma faculdade de Medicina não pode se sobrepor à qualidade do médico formado. “A responsabilidade é toda de quem está gerenciando uma escola médica. Você tem que dar qualificação mínima para o aluno desenvolver a profissão que escolheu”, finaliza.

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