80% das mulheres estupradas carregam feridas psicológicas
A situação vivida por Mariana Ferrer, a blogueira catarinense que sofreu violência sexual em uma balada em Santa Catarina, em 2018, não é um caso isolado. No Brasil, 89% das vítimas de estupro são mulheres, segundo a edição de 2020 do Anuário Brasileiro de Violência. O mesmo relatório aponta que a cada 8 minutos uma pessoa é estuprada no Brasil, onde a cada 2 minutos existe também uma ocorrência de agressão doméstica. O País é o 5º no ranking mundial quando o assunto é a violência contra a mulher.
Essa realidade certamente é ainda mais alarmante porque faltam dados oficiais sobre a real dimensão deste fenômeno no Brasil e acredita-se que apenas 35% das pessoas que foram estupradas geralmente apresentam de fato queixas policiais. A ex-modelo e empresária Luiza Brunet sentiu na pele as feridas da violência, que a acompanham desde pequena. Ela foi testemunha de violência doméstica na infância, vítima de abuso sexual aos 12 e agredida pelo ex-companheiro aos 54 anos. Faz pouco tempo que resolveu denunciar os episódios. Na visão dela, a violência contra mulheres é fundamentalmente por gênero. “É por isso que precisamos lutar. Denunciando, essa questão se manterá viva. Precisamos fortalecer as mulheres a tomarem coragem e denunciar sempre”, afirma.
A subnotificação pode ser explicada por vários motivos, mas principalmente pelo machismo arraigado em nossa sociedade patriarcal, cuja parte dos homens parece viver no tempo das cavernas em pleno século XXI, a julgar pelo comportamento do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defendeu o empresário André Aranha, réu num processo em que foi acusado de estupro contra Mariana Ferrer.
“Dizer que a vítima publicava fotos ginecológicas nas redes sociais não pode ser usado como argumento em julgamento sério, porque é travestido de preconceito. As palavras ofensivas do advogado perante a Justiça são mais uma evidência de que as mulheres são tratadas como ‘levianas’ até mesmo sob o olhar de alguns operadores do direito quando o assunto é o estupro. Mesmo sendo vítimas, são culpabilizadas. O machismo enraizado na sociedade brasileira insiste em colocá-las nos bancos dos réus como provocadoras, estimuladoras da violência sexual e seres dotados de alta capacidade sedutora para os ‘indefesos homens'”, afirma Alessandra Diehl, psiquiatra e especialista em sexualidade.
A médica alerta que o estupro acarrerta consequências gigantescas e, muitas vezes, incalculáveis para a saúde física e mental das vítimas, como a depressão, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), HIV, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e traz altos custos para os sistemas de saúde e criminal. “As vítimas de estupro são 13 vezes mais propensas a tentar suicídio em comparação às outras formas de violência. Cerca de 80% das vítimas de estupro sofrerão com dor crônica e/ou outros transtornos psicológicos de formas duradouras. Após a agressão a atividade sexual pode se tornar algo terrivelmente assustador para muitas mulheres. Trata-se, portanto, de um fenômeno global, um grave problema de saúde pública que desrespeita os direitos humanos e direitos já adquiridos por todas nós, mulheres”.
Como mudar o quadro de violência contra as mulheres no Brasil
Na opinião de Alessandra Diehl, enquanto o direito penal só pode punir o comportamento desviante, as intervenções na área da saúde pública podem usar estratégias de prevenção, que deve começar na infância. “Existe uma enorme necessidade de ampliação de educação sexual nas escolas brasileiras, além de campanhas na mídia e de estratégias de prevenção ambiental, além de educação/treinamento para juízes, promotores e médicos generalistas e foresences que atendem vítimas de violência sexual”, argumenta Alessandra Diehl.
Na opinião da líder no Paraná do Projeto Justiceiras, Mariana Bazzo, as melhores estatísticas de prevenção desse tipo de violência se referem à mudança de cultura da sociedade, ou seja, envolvem políticas públicas que ultrapassem o mero punitivismo. “Há uma lacuna também no atendimento especializado às mulheres e às famílias por meio do sistema único de assistência social e de saúde, que deveriam receber maior importância, inclusive, no orçamento específico”.
Claudia Montanha, Tesoureira da Caixa de Assistência dos Advogados do Paraná, explica ainda que uma das medidas que pode ser aplicada pelo juiz em caso de violência doméstica é o comparecimento do agressor a programas de recuperação e de reeducação, além do acompanhamento psicossocial. “Esse atendimento pode ser individual ou por meio de grupos de apoio, como prevê a legislação Maria da Penha. Ou seja, há uma busca pela recuperação do agressor. Esses programas são formados por operadores do direito, psicólogos e profissionais de assistência social”, conta.
A especialista reforça que no Paraná já existem iniciativas que buscam reabilitar esses agressores, numa ação conjunta do Judiciário com o Ministério Público. “Em Cianorte, num universo de 600 homens que participaram de programas de recuperação, apenas quatro reincidiram no cometimento de atos de violência familiar. Temos cidades onde a reincidência foi zero. Acredito muito nesses tipos de programa de reabilitação, principalmente porque a participação dos agressores é obrigatória. Além do resgate do agressor, é necessário também investir em ações de prevenção e conscientização contra a violência doméstica, com adoção de políticas públicas relacionadas com essa temática”, complementa Claudia.
Alessandra Diehl cita também que em países como Portugal já começou a surgir uma nova prática promissora na prevenção de estupro em contextos ambientais, que envolve a participação de bystanders para a criação de alianças entre jovens mulheres e homens nas escolas de nas universidades. Um grupo chamado “Men can stop rape” (Homens podem parar o estupro) realiza o treinamento de bystander: eles são observados como aliados para impedir ou prevenir as práticas de abuso sexual.