“Apanhei e sobrevivi”… Mas a que custo?
A preocupação científica sobre as consequências de determinados tipos de criação das crianças é recente, e ainda há muito para ser estudado. Parte do motivo pelo qual esse tema não era estudado até pouco tempo é porque somente em 1990, com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é que a criança passou a ser vista como um sujeito de direitos, e não mais uma total propriedade dos pais. Com isso, ciência e estado passaram a olhar mais para como as crianças estavam sendo educadas e que tipos de privação de direitos estavam acontecendo. O tema das possíveis consequências da punição ressurgiu em 2014, com a criação da Lei 7.672/10, denominado Lei da Palmada, que visa proibir castigos físicos às crianças e adolescentes pelos pais ou responsáveis. Frente a todas as polêmicas que surgem ainda hoje com o assunto, trago aqui alguns motivos que as Ciências e a Psicologia nos apresentam que justificam o porquê não devemos punir fisicamente nossas crianças. Todos os argumentos a seguir foram retirados de duas obras: ‘Coerção e suas implicações’, de Murray Sidman, e ‘Eduque com carinho’, de Lidia Weber.
Em primeiro lugar, quando punimos fisicamente uma criança por conta de um determinado comportamento, a criança tende a diminuir aquele comportamento específico ao longo do tempo. No entanto, ela tende a diminuir também sua taxa geral de comportamentos, gerando o que chamamos de empobrecimento comportamental. Isso acontece porque a criança muitas vezes não sabe exatamente pelo o que foi punida, então deixa de desempenhar diversas ações com medo de receber a punição, podendo apresentar assim sintomas depressivos de falta de energia, motivação e a apatia (uma espécie de insensibilidade emocional).
No entanto, nem sempre a criança vai diminuir ou parar com o comportamento que está sendo punido. Muitas vezes, vocês já devem ter reparado, as crianças passam justamente a aumentar a incidência daquele comportamento pelo qual foi punida. “Parece que quanto mais eu bato, mais ele apronta…”. E não é à toa. Estímulos que são vistos como punitivos pelos pais ou responsáveis, como broncas, gritos ou até mesmo agressões, podem na verdade ter a função de atenção para a criança, aumentando assim seu comportamento dito “errado”. Explico com um exemplo: Se uma criança pede para comer a sobremesa e os pais não olham para ela, então ela começa a repetir incessantemente que quer comer a sobremesa e ainda assim não consegue atenção, então ela passa a gritar e jogar objetos falando que quer a sobremesa… E então os pais olham para ela e gritam “Pare de fazer escândalo, você não vai ganhar a sobremesa”. Nesse caso, a criança não ganhou a sobremesa, mas ganhou a atenção dos pais, e a atenção é um dos principais reforçadores para o ser humano – dessa forma, os pais passaram a reforçar o comportamento de birra da criança. E esses “acidentes” acontecem com muita frequência.
Mais algumas consequências apresentadas de forma muito sucinta: com a punição, a criança não aprende qual é o comportamento esperado, somente o que ela não pode fazer, o que pode deixar a criança angustiada e desamparada. Ainda, as crianças aprendem por modelo, e quando os pais batem nela, estão mostrando que quando se sentem com raiva ou frustrados, a solução é bater. Não é à toa que crianças que tem uma disciplina pela punição frequentemente são violentas na escola. Ainda, a punição gera uma série de emoções negativas na criança – culpa, vergonha, tristeza, ansiedade, desamparo, além da liberação de cortisol, um hormônio liberado em situações de stress que pode gerar dificuldades de aprendizado e um fenômeno chamado ‘efeito deletério’ no cérebro, o que atrapalha um desenvolvimento neurológico sadio.
Poderia citar diversos outros resultados que foram observados em crianças que passam ou passaram por uma disciplina baseada na punição, e para aprofundamento do tema indico as obras citadas anteriormente. Porém, o mais importante é que quando pesquisadores dizem que não se pode bater nas crianças, fique claro que existem motivos científicos por trás dessa indicação, e não uma tentativa de interferência na autoridade dos pais. Frequentemente quando falo sobre esse tema escuto a frase que dá título a este texto: “Mas eu apanhei e sobrevivi”… E costumo responder “Pois é, mas a que custo?”. Será que devemos criar crianças que precisem sobreviver às suas infâncias? Para finalizar, deixo uma reflexão extremamente importante sobre o assunto, do autor L. R. Knost: “Ao invés de criar filhos que ficam bem apesar de suas infâncias, vamos criar filhos que se tornam extraordinários por causa de suas infâncias”.
Marjorie Rodrigues Wanderley, psicóloga, professora da Estácio Curitiba, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná